Tribunal do coração é referência ao “centro de comando” que define atitudes, sentimentos e escolhas no percurso da vida. Uma expressão que faz parte do processo de direção espiritual, por sublinhar que a qualificação da existência humana se relaciona com o que está no interior do coração. Ora, viver é uma arte, pedindo, a cada pessoa, o cultivo de certas habilidades, sendo imprescindível a espiritualidade. As virtudes cidadãs e a sensibilidade social, dentre outras qualidades, são essenciais para o ser humano, mas, sozinhas, são insuficientes para se alcançar o bem viver. É preciso investir na espiritualidade e, nesse processo, cuidar do próprio coração, dedicando atenção às suas dinâmicas. O coração precisa hospedar belas estampas, reunidas a partir de cada experiência vivida. São essas estampas bem cultivadas que podem alimentar o bem viver e enriquecer as atitudes do ser humano. É preciso, pois, reconhecer que sem as qualificadas estampas no coração, não se alcança a paz. E sem um coração de paz, os próprios julgamentos e atitudes ficam contaminados por sentimentos “tortos”, preconceituosos, que levam à incompetência humanística.
O compromisso pessoal no cultivo da paz no coração é contribuição indispensável no propósito de alcançar a paz social. É, pois, questão que vai além de um simples bem-estar individual, para ser reconhecido como tarefa educativa indispensável, que não pode ser renunciada. Desconsiderar essa tarefa significa conviver com prejuízos pessoais e sociais. Todos são convocados a investir cada vez mais na própria interioridade, um arrumar-se essencial para se tornar coração de paz. Isto porque a paz é dom de Deus. Esse dom, para ser recebido, requer, de cada pessoa, um especial cuidado com a própria interioridade. Deus é fonte inesgotável de paz, mas a acolhida desse dom depende de um esforço humano indispensável. Esse esforço diz respeito à avaliação e à gestão dos sentimentos que podem fazer do próprio coração um tribunal implacável. Tribunal de julgamentos que inviabilizam a construção de vínculos e as ações que sustentam a fraternidade universal.
Conta decisivamente o especial cuidado com o que se hospeda no coração. Trata-se de uma responsabilidade moral e afetiva que, quando não é assumida, leva à emissão de juízos comprometidos sobre os outros e a respeito das muitas situações que marcam a existência humana. E o tribunal do coração precisa ser justo para não se contrapor à grandeza do amor. O amor é a vocação e a missão de cada coração. Essa vocação e missão são desrespeitadas quando corações se fecham para a escuta do outro, de suas razões, tornando-se um tribunal implacável. Corações fechados emitem juízos caracterizados por uma rigidez na consideração do próximo, inviabilizando a constituição de vínculos qualificados, de relações pautadas pelo respeito. O tribunal do coração precisa contemplar a capacidade de escutar o semelhante, buscando estabelecer diálogos que gerem entendimentos e escolhas acertadas. A escuta é remédio que salva o coração de fechar-se sobre si mesmo, estreitando o seu alcance com maus sentimentos, a exemplo da inveja, da ingratidão e do excesso de rigor na consideração das outras pessoas.
Interiorizar no coração sentimentos qualificados é indispensável para não se correr o risco de simplesmente buscar se agigantar na racionalidade, enquanto se apequena no aspecto afetivo-emocional. Desconsiderar a dimensão afetivo-emocional leva à confusão entre sentimentos e juízos, com impactos negativos nas relações e nas avaliações, promovendo inadequada percepção sobre os próprios desempenhos e responsabilidades. Não raramente, corre-se o risco de leituras que justificam inimizades e ressentimentos, a busca pelo poder mesmo que com consequências prejudiciais para o bem comum. A qualidade das atitudes humanas, do desempenho de líderes, das tarefas exercidas dentro da responsabilidade de cada um, depende da adequada regência dos sentimentos que habitam os corações.
No cuidado dessa regência, são preciosas as indicações do Mestre Jesus, que terapeuticamente trata do coração de seus discípulos. Jesus, em vários momentos, adverte seus discípulos sobre a importância de se cuidar da própria interioridade para garantir justiça e amor. Em certa ocasião, o Mestre sublinhou que a dureza do coração humano produziu a relativização da lei, com consequências graves para a humanidade. Focalizou ainda a incompetência humana e moral revelada na disputa entre seus discípulos que, em determinada situação, almejavam poder e lugar privilegiado revelando vaidade e soberba. Jesus argumentou, reiteradamente, sobre a importância da autoconsciência. Apontou indicações e práticas para se evitar a substituição do amor recíproco por mágoas - multiplicadoras de sombras, de ingratidão e de leituras da realidade sem as virtudes de um coração simples. O Mestre sublinhou especial advertência: não traz condenação o que entra, mas o que sai da boca, considerando imoralidades que ferem a grandeza da vocação humana.
Investir na qualificação do próprio coração, em um fecundo itinerário espiritual, é indispensável para alicerçar juízos, decisões e escolhas que levem à paz. Um itinerário para promover os valores e os princípios essenciais à fraternidade solidária, meta que precisa ser alcançada urgentemente, para que seja respeitada sempre, e cada vez mais, a dignidade humana.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Ilustração: Jornal Estado de Minas