Artigo de dom walmor

“Rasgou-se o véu do templo de alto a baixo, em duas partes!” O evangelista Marcos registra assim a morte de Cristo, o Salvador, com força simbólica, no contexto da narração da paixão de Jesus. Independentemente das diferentes e possíveis interpretações alusivas às rupturas com aristocracias políticas e religiosas, relativização de celebrações, tradições e cultos, firma-se o marco entre o antes e o depois. A história irremediavelmente passa a ser interpretada, entendida e contada de modo novo e diferente. Uma pessoa torna-se divisor de águas para o mundo. Emoldura o horizonte da humanidade com o singular jeito de ser do Messias, Profeta e Salvador. Rasga-se o véu do templo pela força do forte grito de Jesus que entrega o seu espírito. Ele morreu! Uma morte vencida pela força do amor misericordioso de Deus.

A história já não é mais a mesma. Abre-se  nova perspectiva, balizada pela justiça e pelo amor, pela força de dinâmicas advindas dos valores do Evangelho, que inova e transforma. Por esses valores, o tecido cultural de cada sociedade pode ganhar – como já ganhou e ganha – nova qualidade e força de congregação. Mudanças que permitem reconhecer e respeitar a dignidade de toda pessoa. O cristianismo é incontestavelmente uma via qualificada por balizar-se no diálogo, na força de transformação das diferenças em riquezas e pela sagrada consideração da sacralidade de cada indivíduo. Exige, por isso mesmo, uma ambientação sociopolítica que jamais sacrifique ou funcione na contramão dessa dignidade maior. A fé cristã tem força que aponta permanentemente para um compromisso político e cidadão: privilegiar dinâmicas que façam da convivência social uma modelagem baseada nos parâmetros da paz e da justiça. Não há espaço para feições autoritárias, absolutistas, mecanicistas e de fácil manipulação, que ameaçam o bem comum.

A morte de Cristo é redentora e não, obviamente, um fracasso. É mergulho que resgata o ser humano para reabilitá-lo com força sustentadora e de plenitude. Neste dia, Sexta-feira Santa, os cristãos celebram a morte que fecunda a esperança, reestrutura compreensões e possibilita um entendimento que rompe as jaulas dos partidarismos, das miopias políticas e das estreitezas mesquinhas. A morte de Jesus é um horizonte novo, abertura para o desabrochar da vida. Uma conquista vitoriosa, que faz da morte uma porta de passagem para a plenitude. Oferece sentido ao viver em meio às circunstâncias desafiadoras da existência humana, inclusive as que se relacionam ao contexto social e político.

O poder político que provocou a morte de Cristo, redentora pela vontade de Deus, projetou os acontecimentos que rasgaram, com força simbólica, o véu do templo, “de alto a baixo”. E de alto a baixo está rasgado também o véu da cidadania no Brasil. A política, particularmente a partidária, na sociedade brasileira, fez precipitar um terrível rasgão. Urgente é recompor essa ferida terrível que alentou esquemas de corrupção e obscureceu a nobreza do exercício da política partidária e representativa.  Há um longo caminho a ser percorrido para recompor esse véu rasgado. O percurso exige competência política para alcançar a unidade cidadã capaz de dignificar os governantes, que devem ser representantes e servidores do povo.

Na escuridão que paira, está escondida a oportunidade para que se possa viver um recomeço.  Assim, é preciso procurar a solução capaz de garantir à política brasileira uma qualidade própria. Para além de radicalizações e desordens, a cidadania brasileira está desafiada a pautar seu caminho à luz de valores que proporcionem o exercício permanente do diálogo, evitando ódios e execrações vingativas. É preciso cultivar a abertura para encontrar saídas e novas respostas. Isso é tarefa de todos. Acima de tudo, pela representatividade e alto grau de responsabilidade, dos que integram os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.  Cada pessoa está desafiada a contribuir, a partir da lucidez de diálogos, para vencer as artimanhas interesseiras e o caos político. Somente assim, a sociedade não se precipitará nos horrores e nos fundamentalismos. Que se consiga, com a participação cidadã, reconquistar a inteireza do véu que se rasgou de alto a baixo; seja preservada a democracia e, acima de tudo, o bem do povo.

 
 
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
 Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
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