A vida contemporânea, alicerçada e emoldurada por impressionantes avanços tecnológicos e conquistas científicas, sofre com um acentuado processo de fragmentação que afeta o reconhecimento sobre o sentido da vida. Um peso e desafio existencial, originado também na força deletéria do individualismo. A superação desse entrave se faz pelo coração, ensina o Papa Francisco, na sua mais recente Carta Encíclica, sobre o amor humano e divino do coração de Jesus. É muito oportuno viver o Ano Jubilar 2025 acolhendo o ensinamento do Papa e, assim, se tornar peregrino de esperança. Sabe-se que as fragmentações trazem consequências graves para a vida de cada pessoa, das famílias e da sociedade. O coração é essencial para superar os males provocados por esse fenômeno, que é inevitável, considerando as múltiplas e velozes dinâmicas da atualidade. Apesar desta importância, a sociedade tem sido dominada pelo narcisismo que é anticoração, bem adverte o Papa Francisco.
Quando o coração é desconsiderado, não se enxerga o semelhante no horizonte, tornando as pessoas limitadas pelo egoísmo, incapazes de relações saudáveis e atitudes de reconciliação. E sem reconciliações o mundo padece, convive com guerras, torna-se caótico, semelhante ao caos inicial quando Deus fez surgir a Criação como expressão de seu amor. Avançar rumo a cenários caóticos resulta, pois, da incapacidade de acolher a Deus, deixando-se guiar pela soberba e pela indiferença. Consequentemente, perde-se a capacidade de hospedar o semelhante no próprio coração. Um coração desvirtuado perde também a faculdade de harmonizar a própria história, unindo os muitos fragmentos que tecem a vida de cada pessoa. Essa perda prejudica, pois, a autovalorização e, ao mesmo tempo, a abertura ao semelhante. O ser humano torna-se, assim, inábil para dialogar, exercício essencial à busca de sentido nesta realidade tão fragmentada do mundo contemporâneo.
Tenha-se presente que na era da inteligência artificial não se pode esquecer a poesia e o amor como instrumentos de salvação do ser humano. O algoritmo não é capaz de promover as experiências essenciais que conferem sentido à vida. Esse sentido vem do coração e das vivências que somente são possíveis a partir deste núcleo que define e sustenta o ser humano no seu viver e na sua missão. É a sede do amor, que precisa ser bem cuidada, tendo em conta que a identidade de cada um se alicerça na competência para amar. É um desastre perder o coração, conformando-se com a indiferença diante das guerras ou do abandono dos pobres e vulneráveis. A indiferença que contamina corações é responsável por cenários desoladores da civilização atual. O Papa Francisco sublinha: “Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da própria vida e até mesmo procura por Deus, e ainda quando sente o gosto de ter vislumbrado algo da verdade; todas estas reflexões exigem que se encontre o seu ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe porque e para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia.”
O caminho da harmonia pode dar ao mundo contemporâneo um novo rumo. Buscar alcançá-la, cuidando para que o próprio coração seja marcado pelo amor, é experiência de espiritualidade sem a qual torna-se mais difícil avançar na direção da fraternidade e da amizade social. A dinâmica da espiritualidade permite a emersão de novas práticas de reconciliação e priorização de tudo o que ajuda e sustém o semelhante, particularmente os pobres e vulneráveis. Comprova-se que, sem deixar de lado o horizonte luminoso e indispensável da racionalidade, deve-se percorrer o caminho insubstituível da fraternidade, fonte alimentadora e alicerce do viver reconciliado. Ora, o coração ama, adora, pede perdão, serve, onde for preciso, com coragem e disposição, dando sempre prioridade ao bem, jamais a caprichos, disputas de poder ou ressentimentos mesquinhos e egoístas.
Amizade e reconciliação só se constroem com o coração, exercendo o amor. Determinante nesta experiência é saber quem foi o primeiro a amar – o coração de Deus. E o coração de Deus revela-se n’Aquele que morreu e ressuscitou para salvar a humanidade, Jesus Cristo. É o coração de Deus falando ao coração humano pela linguagem e gestos de amor. Daí nasce a indicação preciosa de investir na centralidade de Cristo como Senhor e Mestre da própria vida. Trata-se do caminho que leva à purificação e à aquisição de sabedoria, tesouros indispensáveis para quem quer ser feliz de verdade. Aprender com Jesus abre um horizonte novo de compreensão sobre o viver humano. Importa convencer-se que somente um coração qualificado é capaz de colocar as outras faculdades e paixões em uma atitude justa diante do amor de Deus. A cura desta terra ferida se operará mediante o tesouro inesgotável que é o coração de Deus, revelado e colocado como fonte pelo coração de Cristo.
Grande é o risco provocado pela vaidade humana, que alimenta soberbas, fecha o caminho para um coração renovado, com propriedades para “ajuntar os cacos” e compor “belo mosaico”, repleto de nobres sentidos para a humanidade. Para que a civilização contemporânea supere seus muitos desafios não são suficientes apenas as estratégias e lógicas alicerçadas na técnica. Gestos de amor são fundamentais. Gestos de amor pequenos e grandes que, em conjunto, mudam o mundo. A sociedade contemporânea não dispensa os avanços tecnológicos, mas demanda, principalmente, um cuidado maior com o coração de cada pessoa, que precisa estar entrelaçado com o coração do semelhante, compondo uma rede capaz de resgatar o mundo das depredações ambientais, sociais e políticas. Assim, as fragmentações tornam-se belo mosaico, por um novo tempo, mais humano, fraterno e solidário.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte