O Projeto de Lei de Iniciativa Popular, mais conhecido como Ficha Limpa, aprovado recentemente na Câmara e Senado, esperando a sanção presidencial, consolida um novo passo indispensável na vida e funcionamento da sociedade. A meta desse Projeto de Lei é a recuperação da intrínseca confluência entre responsabilidades políticas e a dimensão moral da representação. A representação política não pode separar-se do compromisso e da inteireza moral exigidos no exercício de cargos e responsabilidades - sob pena de comprometer a sensibilidade e capacidade de compartilhar a sorte do povo e buscar, com lucidez profética, a solução de problemas sociais.
A solução de problemas sociais não é uma simples questão de estratégias ou uso de ações populistas com tratamento assistencialista de questões e realidades que clamam por mudanças estruturais mais radicais. Há uma capacidade e horizonte de interpretação da realidade, em busca de soluções e respostas, que ficam comprometidos quando falta densidade moral na conduta e nos juízos de valor. A responsabilidade da autoridade política só é correta e fecunda quando o poder é exercido em espírito de serviço. Este espírito de serviço fica seriamente comprometido quando o exercício da autoridade não tem este forro de moralidade. Os riscos são sérios e desastrosos como é do conhecimento da opinião pública.
A sociedade tem presenciado e sofrido com experiências nefastas de autoridades que constituídas pelas eleições representativas não têm, no exercício da autoridade política, envergadura para isso. A corrupção política, entre as deformações do sistema democrático, é uma das mais graves, como sublinha a Doutrina Social da Igreja Católica, “porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social”. Os comprometimentos morais configurados nas condutas de governantes e representantes do povo distorcem a autêntica relação que precisa existir entre governantes e governados, representantes e representados.
Compreende-se porque há uma crescente desconfiança em relação à política e seus representantes. A consequência é o enfraquecimento das instituições. “A corrupção política distorce na raiz a função das instituições representativas, porque as usa como terreno de barganha política entre solicitações clientelistas e favores dos governantes”, afirma também a Doutrina Social da Igreja Católica, causando prejuízos na realização do bem comum de todos os cidadãos, em razão de favorecimentos àqueles que possuem os meios para influenciar.
Ora, quem participa da organização e da gestão feita pelo Estado tem que mover-se no horizonte do serviço aos cidadãos com o compromisso de garantir uma administração pública justa. Outra importante afirmação da Doutrina Social da Igreja: “o exercício da autoridade política seja na comunidade como tal, seja nos órgãos representativos do Estado, deve ser sempre realizado dentro dos limites da ordem moral, para procurar o bem comum, dinamicamente considerado, de acordo com a ordem juridicamente estabelecida ou por estabelecer”.
O povo é o sujeito da autoridade política considerado na sua totalidade como detentor da soberania. Por esta razão a autoridade política tem que guiar-se pela lei moral. A dignidade e consistência desta autoridade derivam do âmbito da ordem moral. Isto significa dizer que não se pode compreender e definir a autoridade política, nas suas normas, finalidades e compromisso com destinatários, apenas enquanto consideração de valores de caráter puramente sociológico e histórico.
É inadmissível no exercício da autoridade política quem não reconhece, desrespeita e tem conduta comprometedora quanto à ordem moral existente. A autoridade política tem o dever e compromisso de reconhecer, respeitar e promover os valores humanos e morais essenciais.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) empenhou-se de modo admirável e decisivo para a aprovação do Projeto de Lei “Ficha Limpa”. Trata-se do comprometimento com a moralidade na política. A caminho das eleições, a Igreja, na sua tarefa missionária de ensinar, tem o grave dever de formar e esclarecer consciências e cidadãos para que pesem bem, no seu direito de escolher, a ficha dos que põem seus nomes para serem sufragados nas eleições deste ano. A CNBB também quer ir adiante nessa busca de moralidade na política quando lança o Documento 91, “Por uma reforma do Estado com participação democrática”, aprovado na 71ª. reunião ordinária do seu Conselho Permanente, em março deste ano.
Por dever de profecia e compromissos no serviço à vida, a Igreja está presente para contribuir nessa crise de civilização, porque trabalha e colabora para a concretização da moralidade na política.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte