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Espetáculo e aberração

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

O dom da vida não pode pendular entre espetáculo e aberração no cotidiano da sociedade, da vida familiar e no dia a dia de cada um. Este movimento mata a cultura da simplicidade que revela, de maneira completa e autêntica, a glória do amor, razão única para empenhar-se na aventura de viver. Merece atenção o predomínio da perversa dinâmica pendular entre espetáculo e aberração, que infelizmente confere tônica à comunicação, ao funcionamento das relações interpessoais, ao jeito de fazer política e, até mesmo, ao modo de se usufruir da liberdade religiosa. Essa preocupação é pertinente porque tal dinâmica compromete a cidadania e é determinante na desestruturação da cultura. Não raramente, contribui para a deterioração de tradições, tão necessárias para o avanço da sociedade. A tendência de se rifar tudo o que se pode neste tempo, em razão de conquistas tecnológicas e conceitos reduzidos sobre liberdade, a partir da lógica perversa entre o espetáculo e a aberração, produz uma subcultura.  A grave consequência é a despersonalização das relações sociais que marcam a sociedade contemporânea.

É assustador o grande interesse do cidadão, seu fascínio pelas situações aberrantes que ganham ares de espetacular e alimentam o lado sombrio da condição humana. Avançar, progredir, fazer, conquistar, inovar e outros verbos podem e precisam compor o vocabulário da cidadania contemporânea. No entanto, a simplicidade há de ser a tônica para que não se percam balizamentos importantes no direcionamento do que se escolhe fazer, projetar e construir. O que se deseja fazer não pode estar desconectado com o sentido inegociável de serviço dedicado à sociedade e à cultura, em fidelidade a valores e princípios. Caso contrário, a dinâmica do espetacular e da aberração alimentará o ego de pessoas e grupos. Seremos vítimas de síndromes muito perigosas. Estaremos sempre distantes do mais nobre sentido de cidadania, da autêntica vivência confessional, segundo a própria liberdade de escolha, com consequentes manipulações em vista de interesses que ferem a vida dos cidadãos, particularmente dos mais pobres, frágeis e indefesos. A síndrome da disputa, que acomete diversos segmentos da sociedade, é exemplo de prejuízo que resulta da falta da simplicidade como parâmetro. Essa síndrome é alimentada pelo desejo egoísta de ser considerado o mais, o primeiro, o melhor, uma necessidade que faz negar o outro pela desclassificação, muitas vezes forjada e mentirosa.

Infelizmente, muito do que se faz não é para atender necessidades históricas, o que a vida apresenta como demanda, como a busca pela superação das desigualdades sociais. Com frequência, os projetos são elaborados, nas diferentes áreas e campos do saber, simplesmente como busca de engrandecimento pessoal, no máximo grupal ou partidário. Ignora-se uma cultura consistente nos seus valores e princípios, capaz de alicerçar a cidadania. Assim, torna-se consolidado um contexto em que o espetacular e a aberração valem sempre mais, prejudicando a simplicidade que garante igualdade, profundidade e resultados cidadãos.

Funcionar segundo o pêndulo da dinâmica do espetáculo e da aberração impõe à sociedade uma necessidade de viver da criação de figuras idolatradas. Isto impede o alcance de conquistas que só são possíveis a partir de uma cidadania vivida na simplicidade, na qual as diferenças, no que se refere à importância social ou à excelência no que se faz, não têm o restrito sentido de superar os outros. Ao contrário, estas características constituem responsabilidade ainda maior de colaborar para construção cidadã do tecido social, cultural e religioso que sustenta substantivamente um povo.  É alto o preço a ser pago quando se segue no caminho contrário desta compreensão. Convive-se, por exemplo, com os atrasos na mudança de cenários abomináveis e com a espetacularização de feitos e fatos, que nada contribuem para superar a distância entre diferentes camadas da sociedade.

Só a simplicidade alimenta a coragem de uma postura cidadã, fazendo com que todos sintam vergonha das desigualdades sociais, do modo medíocre como se faz política no país e, a partir disso, sejam capazes de gestos mais efetivos.  Ela capacita cada um a ser o que é não por vaidade, mas em razão da urgente mobilização para se reconstruir a sociedade.  Refletir este tema - a dinâmica pendular que coloca o dom da vida entre espetáculo e aberração - é oportunidade para se cuidar, em tempo, do acelerado processo de desumanização em curso, um risco para todos, que provoca prejuízos irreversíveis.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

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