Cantou-se, num tempo em que havia mais brotos de esperança, uma singela canção. Dessas canções que levam ao coração humano singular encantamento para bem viver. E também uma inocência, bálsamo e remédio para curar perversidades, indiferenças. Cantava-se assim: “Palavra não foi feita para dividir ninguém, palavra é a ponte onde o amor vai e vem”. Pois hoje, tempo de inusitada velocidade na circulação do que se fala, se verifica uma banalização da palavra, fenômeno poderoso para alavancar a banalização do mal. Até na defesa da verdade, busca-se demolir o outro, com ataques a reputações, um passo rumo ao autoextermínio. Dentre as consequências está o enfraquecimento de instituições que, neste momento desafiador, são chamadas a decisivamente contribuir com a recomposição do tecido sociopolítico e a abertura de novo ciclo na história.
Palavra não é simplesmente a emissão de um som com configuração sintática e semântica. É força que pode ser construtiva ou destrutiva. Então não se pode “dizer por dizer”. Não se deve “jogar palavras ao vento”. Nessa perspectiva, e considerando o atual momento, merece maior atenção o desafio existencial imposto pela pandemia, com seus desastres dolorosos – o número de mortes que enlutam corações, indicação de um verdadeiro genocídio. Este tempo demanda ainda mais palavras de consolação, que cultivam esperança nos que estão desolados, em razão da solidão, dos pés cansados, dos joelhos enfraquecidos, sem forças para continuar a lutar. De modo especial, é preciso sublinhar que os cristãos, morada do Espírito Santo de Deus - chamado de consolador, o paráclito, por Jesus - têm a irrenunciável tarefa de alimentar-se de consolação para consolar os outros.
Consolar é um ato de fé, capacidade para expressar palavras que reacendam a luz da esperança. Palavras que alimentem a coragem para que as pessoas continuem seus caminhos, iluminando a mente para imbuir-se das inegociáveis páginas e lições do amor de Deus. Infelizmente, o que se assiste hoje é a piora de cenários desoladores que atingem a humanidade, a sociedade brasileira. Uma situação agravada pelo coro de agoureiros, fonte diabólica de palavras que precipitam, deliberadamente, o povo no caos, ameaçando o seu destino e a sua história. Torna-se essencial reconhecer a função insubstituível da palavra, para ser contraponto aos que buscam inviabilizar o diálogo, cooptar desavisados e enfileirar fanáticos. Gente que, em nome de um tipo patológico de paixão, justifica o injustificável e defende o indefensável, nas molduras de negacionismos e de obscurantismos que são sintomas de sociopatias.
A banalização da palavra abriu campo para as fake news, de capacidade destrutiva, causando confusão, juízos equivocados, com consequências ameaçadoras para pessoas e instituições. Enquanto isso, convive-se com a lacuna de palavras ainda esperadas, de muitos líderes, incapacitados para dizer o que é necessário pela falta de formação humanística. A sociedade brasileira, agora de modo ainda mais urgente, precisa de líderes e cidadãos capazes de partilhar palavras que promovam reconstrução e respostas para os problemas contemporâneos. Os fracassos sociais são também adequadamente creditados aos que palreiam palavrórios sem força de edificação, na contramão da direção do bem, da justiça e da urgência maior que é salvar vidas.
Há um tipo de palavra que precisa, lucidamente, ser dita, e prevalecer no conjunto da sociedade, repercutindo nas instâncias de poder, para que a civilização encontre novo rumo. Essa palavra, para ser escutada, não necessita de gracejos divertidos, de pessoas que parecem estar em picadeiros. Trata-se da palavra de quem promove a amizade social, inspirando a solidariedade com suas exigências de novas lógicas e dinâmicas, particularmente aquelas capazes de resgatar os mais pobres e vulneráveis dos escombros da desigualdade social. Seja escutada a palavra de quem constrói pontes e recompõe cenários devastados. Pessoas que levam luzes de esperança onde há escuridão.
Indispensável é o exercício da escuta que leva a projetar a própria alma para além da mediocridade, conquistando uma amplitude a partir do amor à vida de todos. Nesse exercício, oportuno é se inspirar em São José, celebrado a cada dia 19 de março, no horizonte deste ano que é especialmente dedicado a ele, em razão dos 150 anos de sua proclamação como patrono da Igreja Universal. Exemplar pai de família, um dom para todos os católicos, São José, visitado pelo Anjo, se mostrou admirável na capacidade para escutar. Por isso, alcançou compreensão adequada sobre o mistério maior do amor, o lugar da única fonte capaz de atrair para a escuta, gerar a palavra que edifica e sustenta pontes para o diálogo, consolidando o compromisso com a vida e a paz.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Ilustração: Jornal Estado de Minas