Artigo de dom walmor

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Ecologia Espiritual

“Deus viu que tudo era muito bom”, o relato do livro do Gênesis revela o olhar de Deus dirigido à sua obra, à Criação. O olhar divino precisa inspirar o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, vocacionado à regência do conjunto da obra do Pai. Neste tempo da Quaresma, com convites interpelantes à conversão, é oportuno acentuar que a dimensão espiritual se vincula ao conceito de ecologia integral, detalhado pelo Papa Francisco. A ecologia, enquanto ciência, ajuda a compreender a relação entre as criaturas todas. Revela que micro-organismos, plantas, animais e os seres humanos estão interligados. Isto significa que todos precisam se mobilizar para garantir equilíbrio ao planeta, evitando a sua destruição. A expressão ecologia integral possibilita à humanidade compreender que esse equilíbrio é também essencial à superação de desequilíbrios sociais. O ser humano não pode, pois, permitir-se agir irracionalmente, cego pela ambição desmedida, regido por uma lógica econômica perversa. A situação atual é grave conforme sinalizam as catástrofes ambientais, provocadas pelos extremos climáticos. Ainda assim, a humanidade permanece diante de sombras que inviabilizam adequados discernimentos, prejudicando a necessária cooperação global que é indispensável para interromper a degradação da casa comum.

Estudiosos afirmam que já não se vive o fenômeno da polarização, mas efetivamente da divisão na sociedade. Podem ser identificados dois grandes grupos que compartilham concepções de futuro inconciliáveis. Por isso, travam uma disputa ferrenha em que ninguém sairá vencedor. Os conflitos se agravam e prejudicam a convivência social, tornando ainda mais distante o sonho de um mundo mais solidário, com tratamento menos desigual na regência dos bens da Criação. As profundas crises que ameaçam o planeta não são resolvidas com xingamentos e extremismos. Também não podem ser superadas a partir da imposição de concepções incompatíveis com o bem comum. A divisão que inviabiliza a cooperação global é fenômeno que precisa ser estudado e melhor compreendido, pois impacta diretamente as ações políticas, com repercussões nas relações internacionais, institucionais e interpessoais.

Vive-se, assim, a fase seguinte ao fenômeno da polarização, com o agravamento das divisões que ferem o planeta, prejudicando especialmente os mais pobres e vulneráveis. Acentuam-se os conflitos, com insanidades, fragilidades e lógicas inadequadas que contaminam a política e a economia, agravando os processos de destruição do meio ambiente. Assim, compreender o significado de ecologia integral pode ajudar a recompor mesas de diálogos, indispensáveis para que sejam encontradas soluções capazes de ajudar a preservar a casa comum. Essas mesas não podem dar lugar a discursos ultrapassados, devem ajudar na construção de saídas para as muitas crises, processo que pode ser doloroso, mas é essencial.

Ilumina a complexa realidade, possibilitando a sua adequada compreensão, as partilhas do Papa Francisco, no terceiro capítulo de sua Carta Encíclica Laudato Si’: é preciso enxergar a raiz humana da crise ecológica, possibilidade de se avançar para além dos “sintomas”, chegando às causas da ruína da vida e do ser humano. A advertência focaliza que não se pode reduzir ou englobar tudo no paradigma tecnocrático. Ao invés disso, torna-se necessário refletir sobre o lugar ocupado pelo ser humano na regência do planeta, à luz dos princípios da ecologia integral. Não se pode deixar que a divisão em curso desconsidere a deterioração da qualidade de vida de muitos e a preocupante degradação social que fere a humanidade.

O ser humano tem o direito de viver e de ser feliz. É criatura deste mundo com dignidade especial, mas precisa reconhecer que a degradação do meio ambiente resulta de um modelo de desenvolvimento que compromete a própria vida, caracterizado pela “cultura do descarte”. Preservar a felicidade e, sobretudo, a vida, exige atitudes no horizonte da ecologia integral, que contempla as dimensões social, política, econômica, ambiental e espiritual - os discípulos de Jesus precisam compreender o mundo à luz do olhar de seu Mestre, conforme aponta o Papa Francisco na Laudato Si’. E Jesus expressa, em colóquio com seus discípulos, o olhar da ternura e do cuidado de seu Pai dedicado às criaturas, ressaltando a singularidade de cada uma delas. Por isso, ensina a importância de se exaltar a beleza que existe no mundo, convidando os discípulos ao cultivo fecundo desta atenção, admiração e carinho.

A harmonia de Jesus com a Criação sempre foi plena, valorizando as realidades deste mundo. Sua vida simples em Nazaré promovia a santificação do trabalho, feito com as próprias mãos. O Mestre trilhou e aponta um relevante caminho - experiência para gestar sentimentos de pertencimento e de solidariedade capazes de suplantar todo tipo de mesquinhez e de indiferença. O olhar de Jesus traz preciosidades capazes de inspirar pensamentos diferentes, com o poder de construir uma política de diálogos - e não de divisões. A espiritualidade cristã pode e precisa ajudar a construir um novo estilo de vida que seja contraponto ao paradigma tecnocrático. Uma fecunda espiritualidade de alcance ecológico para recuperar sensibilidades, constituindo um cenário mais saudável, mais humano. Nesta direção, afirma o Papa Francisco, consegue-se investir em sistemas menos predatórios e excludentes, itinerário para resolver problemas concretos, alternativa às divisões que geram prejuízos para todos. O olhar de Jesus, assim, é capaz de ajudar o mundo a alcançar novas conquistas humanitárias, semeando iniciativas que promovam inclusão, pela força própria e singular de uma ecologia espiritual.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

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