A cidadania sofre um avançado processo de deterioração, comprometendo o equilíbrio de processos complexos e importantes para o bem viver. São enormes os prejuízos - incluem desde as brutalidades que ameaçam o relacionamento entre pessoas até os descompassos nas instituições e governos - evidenciando a gravidade dessa deterioração. Isso acelera a desumanização na sociedade contemporânea e o descontrole dos funcionamentos que deveriam garantir, minimamente, a convivência sadia na urbanidade. Percebe-se que o ser humano, diferentemente das outras criaturas, quando se considera o conjunto da criação, percorre uma via na contramão da sua natureza, identidade e missão. A ação depredadora da humanidade no tratamento da “casa comum”, produzindo desequilíbrio ambiental, causa triste impacto. A racionalidade não consegue delinear atitudes e estilos de vida capazes de evitar os prejuízos que, cedo ou tarde, caem na conta da sociedade. Uma conta alta que resulta da dificuldade para mudar hábitos e definir prioridades.
As posturas egoístas e interesseiras impedem as pessoas de abrirem mão de certas práticas, confortos e bem-estar aparentes, aumentando descontroladamente os danos que impactam todo o planeta. Há um processo crescente de distanciamento da vida social, política e ecológica equilibrada. Parece importar ao cidadão tão simplesmente as garantias de suas benesses, confortos, o dinheiro que ganha e o seu usufruto. Tudo balizado por irracionalidades no comprar, comer, viajar e possuir. São valorizadas no cotidiano as experiências marcadas pela fugacidade. Ao mesmo tempo, cresce uma insatisfação inscrita na subjetividade humana. Esse descontentamento ateia fogo abrasador nas disputas por títulos, lugares e vantagens. O outro é sempre o inimigo e o concorrente. Um individualismo mesquinho contamina a vida familiar, e até o lar se torna palco de disputas. Acaba-se, inclusive, com a garantia dos vínculos, desde os matrimoniais aos da amizade sincera.
Não se consegue enxergar o outro. E não há cidadania sem que se enxergue o outro, particularmente os mais pobres e sofredores. No turbilhão dessa avalanche individualista, que evidencia a perda da direção do amor, a cidadania é substituída pela incivilidade. A sociedade, enlouquecida, vira uma arena de batalha. E vai ficando distante o sentido da solidariedade, o compromisso com a fraternidade, a coragem altruísta de ser bom e partilhar, sem medo de perder. É crescente o instinto devastador do apego aos próprios bens, sem se importar com o próximo, desconsiderando as dádivas de Deus. Por isso, são acirradas as brigas por privilégios, embrutecendo as relações. As pessoas são reduzidas a peças de uma engrenagem social e política, desprovidas da responsabilidade de buscar o bem maior, o respeito ao bem comum. Ignora-se o fato de que é abominável uma sociedade de privilégios que causam discriminações e a exclusão social.
A sombra que delineia o horizonte da sociedade cega os indivíduos e, consequentemente, os conduz a situações de guerras, confirmadas pelos números de homicídios e que revelam o aumento da miséria. Triste é a mesquinhez e a indiferença de quem conseguiu um “lugar ao sol” e não abre mão de nada para oferecer um pouco a quem precisa. Uma situação que contamina a convivência entre pessoas, mas também impacta a relação entre nações, grupos e culturas. “Primeiro o meu, o que importa sou eu, a minha nação, o meu grupo, os meus aliados, meu partido, a minha Igreja”. É assim que se pensa e, por isso, a cidadania se deteriora, não se constituindo mais como parâmetro para o exercício da liderança. Os “líderes” – nos âmbitos políticos, culturais, educacionais e mesmo religiosos – tornam-se prisioneiros no tecido cidadão corroído. Tendem a lutar simplesmente para se manter no lugar que ocupam e continuar a usufruir das benesses. Buscam apenas alimentar vaidades e, assim, se contentam com uma atuação pífia, pouco inventiva. Não oferecem respostas adequadas às necessidades de reformas e atuações.
O assoreamento da cidadania inviabiliza o surgimento de líderes altruístas. Gera uma opacidade que impede o enxergar mais adiante. Assim, tornam-se cada vez mais raras as pessoas que se desdobram para fazer a diferença no cumprimento dos próprios deveres. Percebe-se que a cidadania comprometida por modos mesquinhos de se viver mata a natural e indispensável índole de liderança que está na essência do ser humano. Cada pessoa deve ser protagonista do desenvolvimento, responsável por rumos novos no horizonte humanitário e civilizatório. Isso quer dizer que, nas diferentes situações, da cozinha da própria casa à mesa dos tribunais e dos parlamentos, incluindo os laboratórios, as salas de aulas, os templos e as ruas, é inegociável a cada cidadão desempenhar bem a sua liderança em vista de um tempo novo. Caso contrário, todos ficarão presos nas mediocridades que impedem avanços. Crescerá a barreira da resistência que atrapalha a inovação nas instituições, nos modelos e nos procedimentos.
Urgente é investir cotidianamente na recuperação do tecido cidadão, a partir das posturas, gestos e adoção de princípios. Vencer as condutas individualistas e as disputas sem sentido, para reacender o gosto pela liderança, que não deve ser compreendida como forma de garantir privilégios mesquinhos e alimento para vaidades. Em vez disso, o exercício da liderança deve revelar o amor por uma vida cidadã, que traz equilíbrio para a sociedade. Assim, é possível a cada pessoa cumprir bem o próprio papel, assumindo o compromisso com o bem maior das instituições e do povo. Essencial é o exame de consciência, de cada um, com a coragem de assumir a própria responsabilidade, e a oferta da própria inteligência, das competências, a serviço de uma cidadania que conduza o mundo na direção da justiça e do amor.
[caption id="attachment_29303" align="aligncenter" width="770"] Ilustração: Lelis | Jornal Estado de Minas[/caption]
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte