As manifestações populares que estão sendo realizadas no Brasil podem ser também interpretadas como reação a uma crise que, ao longo dos anos, cresceu em nossa sociedade, atingindo instituições sociais e políticas do país. Diante dessa realidade, que exige uma resposta de todos, diversos peritos, analistas e demais cidadãos refletem a crise da República, ajudando a construir uma nova cultura, e manifestam abertamente o anseio, que por algum tempo permaneceu meio escondido, de se alcançar uma sociedade com funcionamentos mais justos e solidários.
A compreensão do fenômeno que se expandiu pelas cidades do país merece ainda muitos aprofundamentos, mas é possível afirmar que as manifestações quebraram mordaças de todo o tipo, fazendo ouvir a voz das ruas. Nesse sentido, o fenômeno contribuiu para pressionar aqueles que, no exercício de suas responsabilidades, grandes ou pequenas, ferem a cidadania. Exige-se uma readequação dos funcionamentos institucionais, de modo especial nas instâncias governamentais que deveriam servir prioritariamente ao povo e não a um tratamento cartorial a partir do interesse de oligarquias.
Tratar essa chaga que atormenta a história do Brasil é investir na direção de uma cultura contrária ao exercício do poder coronelista, ainda existente neste terceiro milênio, de maneira explícita ou disfarçada em discursos e favores, muitas vezes distribuídos a partir da ação daqueles que foram eleitos para representar toda a coletividade. A dinâmica das manifestações populares é um sinal evidente e exigente de que é necessário mudar a forma de se fazer política. Obviamente, não se trata de pensar uma política sem partidos, que têm a função de incrementar o diálogo indispensável no funcionamento da sociedade. Busca-se, na verdade, um novo contexto, em que partidos e políticos contracenem mais com o povo, segundo novas dinâmicas de funcionamentos institucionais, capazes de viabilizar a participação inegociável, representatividade à altura e constante alimentação de uma cultura cidadã.
Nesse caminho, será possível respeitar direitos e combater a corrupção, encontrar um modelo de se fazer política voltado para o bem comum. Diante de todos, está a exigência de se revisar, profundamente, as instituições políticas e o modo como nossos representantes exercem seus mandatos. O povo tem que ser a instância maior de poder. O compromisso com o seu bem comum será sempre remédio para mudar a cultura excludente e injusta, com a qual a sociedade brasileira funciona escrevendo uma história que pode e precisa ser diferente. Urge-se uma inteligência que articule, institucionalmente e nas ações de todos, particularmente dos que exercem poderes republicanos, mecanismos legais existentes para que um processo amplo, profundo e incidente permita o desenho desse novo tempo e dessa nova cultura.
O povo nas ruas sinaliza a necessidade imediata de resposta, mas, ao mesmo tempo, não se pode correr o risco de tratar as grandes dimensões e implicações dessa crise a “toque de caixa”, como se o assunto fosse simples, ou fazer aquilo que já se fez e se faz muito: utilizar um simples “remendo” para dar uma resposta com a pretensão equivocada de acalmar as pessoas. Também, evidentemente, deve-se descartar a hipótese de provocar mudanças que promovam efeitos positivos apenas para partidos políticos, interesses pessoais ou mesmo de pequenos grupos hegemônicos. Essa possibilidade, se não for descartada, certamente produzirá, como se pode deduzir a partir da observação dos últimos acontecimentos, uma grande convulsão social marcada pela mistura, como já se viu, do anseio do cidadão justo e civilizado com os lamentáveis atos de vandalismos e violências.
Neste sentido, a reforma política, importante item da pauta cidadã, não pode ser entendida como simples calmante às reações populares, com o atropelamento de instituições e com procedimentos que a tratem como se fosse apenas a resposta plebiscitária de uma, duas ou três questões. Ela é complexa e deve ser tratada adequadamente para que o Brasil em crise consiga abrir um novo ciclo político e social. É importante destacar que para viver essa almejada nova etapa não basta apenas mudar dinâmicas e procedimentos nos funcionamentos governamentais. O povo precisa participar e ter a oportunidade de refletir, dialogar, assimilar e opinar nesse processo.
Cada instituição, na sua competência própria e por sua dinâmica peculiar, precisa ajudar nessa configuração de uma nova cidadania como marco civilizatório para a sociedade brasileira. A CNBB continua sua importante colaboração, junto com outras instituições sérias, para que se efetive uma verdadeira reforma política no país. A Igreja Católica, com sua capilaridade, nas suas comunidades e instituições, coloca-se a serviço deste diálogo e da formação de uma nova cidadania. A participação de todos é fundamental neste processo, oportunidade singular para construir um novo Brasil.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte