“Fique em casa” é o mais interpelante apelo desses últimos meses ante o necessário e indispensável isolamento social. Esse apelo remete ao ambiente mais significativo e referencial da vida de cada pessoa, a casa, o lugar sagrado da família. A orientação “fique em casa” tem força no combate efetivo à pandemia da Covid-19, evitando a disseminação do vírus que é letal para muitas vítimas, submetendo famílias ao luto. Uma pandemia que gera ainda colapsos na saúde e incidências na economia. Não é fácil a obediência ao imperativo de ficar em casa, evitando aglomerações e contatos desnecessários. E esse imperativo estampa, ainda mais, o grave problema do déficit e das más condições habitacionais do Brasil, uma vergonha.
A realidade de vilas e favelas reflete a acentuada desigualdade social que caracteriza o país. Para os que não têm habitação adequada, como ficar em casa? E como se não bastasse, há ainda uma questão que torna mais cruel essa situação: no outro extremo, entre os que têm casa, a orientação para permanecer no lar é tratada com escárnio. Há, inclusive, os que incitam a população a ir para as ruas, obviamente aumentando os riscos de contaminação. Pessoas insensíveis a uma realidade óbvia: a saúde requer moradia digna e sustentável. O equilíbrio na natureza, fundamental para prevenir pandemias, não é alcançado apenas com o bem-estar de pequena parcela da população. A exclusão de muitos gera adoecimentos que ameaçam toda a sociedade.
Especificamente sobre a segregação sofrida pelos que não têm casa, a referência alcança também aqueles que até possuem um endereço, mas destituído de mínimas condições para a habitação. Esse cenário revela a fragilidade social que não isenta, inclusive, os que se acham protegidos da contaminação por um vírus. A saúde do planeta, de uma sociedade, depende de condições menos desiguais no campo da moradia – cada um tem direito a uma casa digna para viver. Assim, a orientação “fique em casa” deve também representar um clamor que leve a um novo significado relacionado à rua – fortalecendo o seu sentido de agregação das diferenças, da cooperação, do encontro, de intercâmbios e serviços ao próximo, que é irmão, para gerar inclusão e vencer abismos sociais que adoecem.
Mas sempre se reconheça: a força social e política da rua nunca substituirá a importância da casa, com seu sentido mais forte e fundamental - é a primeira escola do amor, da fé, dos ensinamentos indispensáveis à civilidade, do desenvolvimento da competência em gerar e cultivar vínculos. A casa tem uma sacralidade que ultrapassa os limites estreitos de relacionamentos. É, para além de sua configuração material, sagrada sustentação do viver e do aprender a viver. Apesar disso, movimentos civilizatórios levaram à relativização do valor pedagógico e existencial da casa que, para muitos, tornou-se apenas um alojamento noturno, um “point” para atendimento de algumas necessidades muito básicas, a exemplo do repouso, sem considerar tantas outras, igualmente essenciais. As pessoas desaprenderam, assim, por exemplo, sobre a importância da convivência possibilitada pela casa. Há dificuldade para se relacionar qualificadamente com quem se partilha o mesmo ambiente. Paradoxalmente, por estar desabituado a ficar no próprio lar, o ser humano também é incapaz de lidar com a solidão. Até se deprime. Percebe-se uma dificuldade para cultivar a interioridade. Ficar em casa torna-se, neste contexto, desafiador, e revela carências humanísticas que levam a esgotamentos psíquicos e aqueles inerentes à própria natureza.
Casa e rua devem ser consideradas a partir de renovado significado, compreendidas como outro lugar, diferente do que até então se imaginava. Sem a casa, as instituições se enfraquecem e há despersonalização do ser humano. A Igreja de Cristo, por exemplo, nasce nos lares e, de casa em casa, fortalece a sua presença servidora no coração do mundo. Ao perdurar a exigente e indispensável convocação “fique em casa”, a sociedade aproveite para cultivar e enriquecer a compreensão a respeito da casa e da rua. Nesses espaços, sejam adotados estilos de vida renovados para superar fragilidades e enfermidades.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Ilustração: Jornal Estado de Minas