A discussão para aprovação do Acordo Brasil – Santa Sé no Parlamento Brasileiro, como ocorreu na noite da última quarta-feira, na Câmara dos Deputados, oportuniza debates e reflexões que revelam sua qualificação. Aquela qualificação esperada pelo povo, por direito e por necessidade. A revelação desta qualificação se dá pela via da interpretação, materializada nos discursos e argumentações, para gerar compreensão e ordenamentos jurídicos e legislativos que favoreçam a comunidade humana no seu conjunto e no atendimento de suas necessidades.
A qualidade no exercício da função legislativa se mede pela capacidade de interpretação – com a consequente lucidez para abrir caminhos e alargar horizontes. Esta é uma tarefa exigente porquanto todo processo interpretativo está emoldurado de perspectivas e matizes ideológicos de toda ordem. São determinantes os princípios éticos e morais, os valores e as referências históricas, sociais e culturais. Caso contrário corre-se o sério risco de um processo interpretativo viciado e estreito fazendo escorregar na direção de fisiologismos e posturas cartoriais nefastas para o bem comum.
O debate em questão revelou muito desse âmbito. Aspectos vários se revelaram no campo das interpretações, até mesmo quando se trocava Acordo por Concordata. O Governo Brasileiro e a Santa Sé escolheram o caminho do Acordo exatamente para não permitir toda e qualquer confusão ou entendimento inadequado quanto ao ponto de honra que é o respeito, distinção e autonomia entre Igreja e Estado, especialmente quanto à laicidade da Nação. A discussão gravitou em torno da constitucionalidade da aprovação do Acordo nos aspectos das considerações e entendimentos sobre a laicidade do Estado. Escapa, lamentavelmente, muitas vezes que o Acordo é a documentação de um correto e adequado relacionamento Estado - Igreja.
Neste caso, trata-se da consolidação, pelo reconhecimento do Estatuto jurídico da Igreja, de posições já estabelecidas em vários setores do organismo político-jurídico brasileiro. O Acordo, portanto, na condição histórica da Igreja Católica no Brasil, é um pacto que compendia e consolida normas esparsas, às vezes de conteúdo consuetudinário, num todo orgânico e acessível. Esse encaminhamento nada tem a ver, pois, com entendimentos que apontam privilégios para uma determinada confissão religiosa em detrimento de outras. Não se pode contestar a presença histórica e secular consolidada e os serviços prestados à vida pela Igreja Católica. Serviços incontáveis nestes cinco séculos na sociedade brasileira.
Esta presença se desdobra em argumentos e convicção sobre a importância, direito e necessidade da proposição que a Igreja, através do seu órgão máximo de governo, a Santa Sé, encaminha como garantia de um relacionamento saudável e respeitoso entre instituições que servem ao povo e se comprometem com o bem comum. A liberdade religiosa individual, prevista e respeitada pela Constituição Brasileira, não pode significar um simples nivelamento na consideração de confissões religiosas. Também não é a liberdade religiosa um simples sinônimo e garantia de condições igualitárias em se tratando da confissão da fé, com suas práticas, seus instituídos e a instituição daí decorrente.
Quando se aborda a questão da laicidade do Estado não se pode desconsiderar as características de respeitabilidade histórica, social e cultural que a vivência da fé escreve e inscreve na história de um povo. Não se pode cometer o desatino de nivelamentos que igualam condições, situações e prerrogativas apenas por se dizer que é um novo modo, até sem raízes, de se viver a fé. Tal como os procedimentos que fazem da fé um simples mercado mais do que serviço à vida, ou coloca o dinheiro como símbolo do sucesso no lugar de Deus, a escolha na contramão da espiritualidade do discípulo de Jesus Cristo, em se tratando da fé Cristã. É importante observar o equívoco do entendimento que considera a laicidade do Estado como prerrogativa que o torna incompatível de Acordo com uma instituição, enraizada religiosamente numa profissão de fé, como a Igreja Católica.
Mesmo quando esta instituição, na vivência de sua fé, por seus serviços, presta benefícios que o próprio Estado faz. E muitas vezes não conseguiria prestar sem a presença solidária e comprometida, por esta mesma fé, pela ação múltipla desta referida Instituição. É preciso lembrar sempre a significativa presença da Igreja Católica no mundo da educação, da saúde, da promoção social, da conscientização cidadã, na vida do povo, especialmente dos pobres e no sustento da vida e de seu sentido. Com o Acordo são respeitadas as indispensáveis garantias jurídicas para a Igreja, e se consolidam ganhos para o Estado na execução fiel de suas tarefas e serviços para o bem comum.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte