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Uma “parábola” conhecida, mas sempre nova

Falta-nos, muitas vezes, compreensão e condescendência com os irmãos na fé e com a comunidade que nos acolhe como membros. Queremos muito que os outros nos compreendam e nos aceitem, mas nos esquecemos de que o primeiro passo pode ser nosso

 

*Padre Danilo César

Temos aqui uma narrativa exemplar, e não exatamente uma parábola, que a rigor colocaria a realidade em paralelo com uma imagem simbólica e evocativa.1  Uma história fictícia é narrada e apresentada como modelo para os ouvintes. No caso, uma discussão em torno da herança eterna. Um mestre da Lei tenta colocar Jesus em dificuldade com suas questões legais: “que devo fazer para herdar a vida eterna?” Jesus responde com uma questão que o faz deparar-se com a lei de Deus na sua suficiência: “faze isso e viverás”. Não se dando por satisfeito, o legista propõe a pergunta que irá desencadear a parábola. Ajunta-se ao fazer, outro referencial: a discussão sobre quem é o próximo: “E quem é o meu próximo?” São esses dois ganchos que sustentam a parábola.

Um homem é assaltado no caminho de Jerusalém a Jericó – sabe-se que naquele tempo esse caminho era conhecido como lugar perigoso de assaltantes e percurso deserto. Os assaltantes o deixam “quase morto” (v. 30). Passam por aquele mesmo lugar três homens: um sacerdote, um levita e um samaritano. Os dois primeiros agem da mesma maneira: veem o homem, passam pelo outro lado e seguem adiante. O texto não explica os motivos, mas podem ser deduzidos: são homens do culto (clérigos) e voltam de Jerusalém, pois também descem de Jerusalém, como a vítima. Sabe-se que as prescrições de pureza ritual os impediam de estabelecer contato com cadáveres, ou mesmo com o sangue e isso poderia ser presumido para explicar o afastamento deliberado dos dois homens religiosos. Contudo, a inserção do terceiro personagem, o samaritano, faz entender o contraste estabelecido por Jesus.

Um samaritano que passava por ali

Samaria era uma região da Palestina habitada por colonos de diferentes raças, religiões e nações e que, desde a invasão assíria, habitaram o local, promovendo intensa miscigenação. Havia grande animosidade entre eles e os judeus, de tal modo que os samaritanos não eram considerados parte do povo eleito. Tendo sido excluídos do culto, ergueram o seu próprio santuário e foram considerados hereges pelos judeus, quase pagãos.2  A simples constatação de quem eram os samaritanos faz perceber o alcance da parábola de Jesus: um samaritano é apresentado como modelo a um judeu, doutor da lei… É fácil notar a diferença: o samaritano, passava ali de viagem, e o sacerdote e o levita desciam de Jerusalém, tal qual o homem assaltado.

A insinuação a respeito do culto judaico, com seus 613 preceitos legais de pureza ritual, que impediam aos clérigos socorrer o homem marginalizado, não pesavam sobre a figura do samaritano que por ali passava de viagem: era um apóstata, um herege, portanto, livre das normativas religiosas e impeditivas do judaísmo no tempo de Jesus. Foi ele quem sentiu compaixão pelo homem à beira da estrada (v. 33), aproximou-se do homem ferido, cuidou de suas feridas, colocou-o sobre o seu animal, cuidou dele e o confiou à hospedaria. Embora fosse herege e desprezado, fez o que era essencial: agiu com misericórdia.

Quem é o meu próximo?

 

O próximo é quem se sente convocado pelo drama alheio, que se move distanciando-se da indiferença ou de qualquer outra desculpa para não se envolver

Jesus propõe ainda outra inversão: não interessa tanto saber quem é o meu próximo. Interessa fazer-me próximo, superando os impedimentos todos que distanciam e mantém as situações de marginalidade e de indiferença. Contudo, a proximidade é gerada por um precioso sentimento de compaixão que amplia a restrição da proximidade ao âmbito judaico. O verbo usado no original grego para sentir compaixão sugere algo mais preciso do que “ter dó”, ou “ter pena” de alguém. Significa, outrossim, deixar-se afetar, comover-se interiormente, até as entranhas maternais, por aquele que sofre, ao ponto de mover-se na direção do outro.

Nesse sentido, a parábola mostra a efetividade da misericórdia diante do outro que sofre, à beira do caminho, ferido e espoliado de sua dignidade. O próximo é quem se sente convocado pelo drama alheio, que se move distanciando-se da indiferença ou de qualquer outra desculpa para não se envolver, seja ela religiosa, social, cultural ou política. O próximo é quem atravessa a rua não para seguir em frente, mas para curar as feridas, desinfetando-as com o vinho e protegendo-as com o azeite das ações efetivas. Próximo é quem não ajuda apenas para se ver livre, mas se compromete com o bem do outro, colocando sobre o animal e levando-o à hospedaria. Próximo é quem se envolve até na ausência, deixando recursos para que não fique desamparado quem de outros não obteve ajuda, nem compaixão.

Interpretações alegóricas da parábola

Segundo os santos padres (Ambrósio, Agostinho, Orígenes), Jesus é o Bom Samaritano que do Pai desce ao encontro da humanidade ferida, para com o óleo e o vinho dos sacramentos, da palavra dos dois testamentos simbolizada pelas duas moedas de pratas. O homem ferido é o velho Adão em cada um de nós, machucado pelo pecado e assaltado pelo tentador. O hospedeiro é a Igreja, a quem foi encarregado o cuidado dos pobres e sofredores, e que recebeu a promessa de sua volta para os acertos finais.

Tal leitura alegórica nos chama a atenção para o fato de que somos depositários da misericórdia de nosso Deus. Na liturgia e na vida cristã fazemos a experiência de um Deus que se faz próximo, não distante e nem indiferente. Um Deus que, para se aproximar de nós, não impedem os motivos religiosos ou quaisquer outros, ao contrário, é atraído com entranhas maternais de compaixão diante do nosso sofrimento e dor. É por fazer essa experiência do amor de Deus, que nos recupera, é que nos sentimos convocados a ir ao encontro dos irmãos que sofrem e que se encontram marginalizados, à beira dos caminhos da história e das situações que lhe roubam a vida, a dignidade. À imitação de Deus, como filhos do mesmo Pai que se debruça sobre nós, como irmãos do Cristo que empenhou a sua vida, é que devemos nos deixar mover pela misericórdia, movimento do Espírito de Deus no agir da Igreja que é chamada a se aproximar do outro.

Ser comunidade movida pela misericórdia

A parábola deve moldar também as nossas relações interpessoais na família e na comunidade de fé, bem como na sociedade. Sair da indiferença, ou desapegar-se das justificativas e dos lugares demarcados que foram simbolizados pelos homens religiosos da parábola. Ser compassivo e misericordioso significa abrir mão da própria viagem, como faz o bom samaritano. Deixar o outro interromper o seu percurso, incluir os incômodos que ele pode causar, assumir suas feridas e comprometer-se com a sua necessidade.

Agimos com misericórdia quando abrimos mão de algo para socorrer a comunidade em seus imprevistos em suas urgências. Falta-nos muitas vezes compreensão e condescendência com os irmãos na fé e com a comunidade que nos acolhe como membros. Queremos e desejamos muito que os outros nos compreendam e nos aceitem, mas nos esquecemos de que o primeiro passo pode ser nosso e que a aceitação e a compreensão dadas gerarão ainda mais atitudes de compaixão e condescendência. Atitudes que nos distanciam do outro e nos fazem indiferentes, somente nos levam a dar as costas e a nos eximir da necessária proximidade à qual somos convocados pelo evangelho.

Uma lei que está próxima de nós

Ser compassivo e misericordioso nasce do mandamento do Senhor que, ao encerrar a parábola, propõe ao jurista: “Vai e faze a mesma coisa”. Fazer a mesma coisa não é conjecturar sobre os meandros e pormenores, outrossim fazer o que é preciso e o que se apresenta como necessário no nosso caminho. A primeira leitura insiste na acessibilidade da lei de Deus: ela não está fora do nosso alcance!

 

*Padre Danilo César Santos Lima é liturgista e pároco
  da Paróquia Santana, na Arquidiocese de BH



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