No artigo anterior dizíamos que a gestualidade de Jesus revela sua personalidade espiritual e que a Liturgia é, sobretudo, a continuação no tempo da Igreja desta mesma gestualidade. Leo de Simone, em sua obra “Liturgia segundo Jesus” desenvolve esta noção ao refletir que o complexo ritual cristão se firma no modus operandi de Jesus. Mas não apenas no sentido de ser uma referência teórica ao conteúdo do rito, àquilo que ele mistericamente comunica. Também a forma, a estrutura, o tecido ritual em si mesmo, necessita receber da gestualidade de Jesus – permanentemente – a chancela. Vejamos por exemplo a entrega sacrifical de Jesus que a Igreja celebra na Eucaristia.
Para ser fiel à gestualidade de Jesus é preciso que se coadune a dinâmica sacrifical à dimensão da comensalidade, do Banquete, pois foi assim que a Eucaristia nasceu, como fração do pão. O edifício ritual desta celebração, portanto, deverá resguardar esta forma. Não se poderia, jamais, ser fiel ao mandato de Jesus, se celebrássemos seu sacrifício segundo os cânones gestuais do Templo de Jerusalém, por exemplo; ainda que permanecesse toda referência oral (a palavra) à experiência pascal de Jesus mediante os textos escriturísticos e eucológicos. Seria uma contradição o que geraria uma espécie de esquizofrenia ritual e consequentemente espiritual.
Por esta ótica, os ritos só têm sentido se permanecerem como possibilidade concreta para que os fiéis encontrem o nexo plausível entre o Cristo e a Comunidade a que pertencem (a Igreja), percebendo-a como verdadeiro corpo do Senhor, pelo qual Ele (Cristo) continua a trabalhar no mundo, servindo a seu Pai. Afinal, não se pode esquecer que os dois sacramentos fontais da vida cristã – Batismo e Eucaristia – não são outra coisa senão a transformação dos homens e mulheres no Corpo do Senhor. O Batismo nos configura a Cristo, nele nos insere como membros vivos. Utilizando a mesma designação do Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, “o Batismo nos incorpora a Cristo, tornando-nos membros do povo de Deus”1. A Eucaristia, por sua vez, mantém este acontecimento vivo, fazendo de nós “Um só corpo e um só espírito”. É fato que, com o passar do tempo, os ritos foram tornando-se incompreensíveis nesta relação como acontecimento pascal. Por essa razão a Sacrosanctum Concilium resgistra a necessidade de que “os ritos manifestem uma nobre simplicidade, sejam claros na brevidade e evitem repetições inúteis; sejam adaptados à capacidade dos fiéis, sem precisarem em geral, de muitas explicações.”2
A reforma litúrgica oriunda do Concílio Vaticano II buscou implementar na Igreja um processo mediante o qual os fiéis pudessem participar ativamente da celebração do Mistério Pascal de Jesus. O escopo desta reforma era permitir, de modo mais abundante e consciente, o acesso corporal dos fiéis aos ritos. Ainda colhemos nos dias de hoje a compreensão e experiência de uma liturgia pobre no que se refere à gestualidade da assembleia. Basicamente, hoje, senta-se, levanta-se e ajoelha-se (às vezes indistintamente!). Os gestos tornaram-se meramente funcionais e perderam – em grande parte – o sentido ministerial de transportar-nos ou conectar-nos com a gestualidade de Jesus e por esta conexão exercitamo-nos como membros de seu Corpo Crucificado-Ressuscitado. Evidentemente que o tema dos espaços para celebrar é candente nesta discussão, o que poderemos conversar a respeito mais à frente. Mas basta, por enquanto, refletirmos o quanto o corpo a Igreja permanece imóvel durante o culto. Neste sentido, é suficiente identificar a questão da orientação litúrgica (disposição do espaço) que, na maioria das vezes, nos faz olhar voltar o corpo para o mesmo lugar, do início ao fim da celebração.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista
1RICA, 2.2Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 34.
2Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 34.