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Uma liturgia que transgride

Liturgia e gestualidade

Uma maneira simples de compreender a Liturgia, mas nem por isso pouco profunda, é considera-la como continuidade histórica da gestualidade de Jesus. Sabe-se que o gesto, mais do que a palavra oral ou escrita, é capaz de “falar”. Há uma eloquência no gesto. Franco Boscione em seu “Los gestos de Jesús” nos alerta que o gesto vai além da ação ou da atividade por seu caráter simbólico.[1]  Isto significa que o gesto se caracteriza por uma ação que ultrapassa a funcionalidade. Assim, “beijar” é bem mais (é até outra coisa!) do que encostar os lábios a algo ou alguém.[2]  Para resumir, pode-se dizer que o gesto é uma ação com sentido (ou sentidos!). A gestualidade humana se caracteriza pela intencionalidade, inteligência, afeto e direção. Tudo isso dando-se com um só acontecimento, que separamos artificialmente no processo de análise.
   
Partindo da aproximação conceitual acima, é possível concluir que a humanidade se faz também pela gestualidade. Neste sentido, os animais e demais criaturas não possuem gestos propriamente ditos porque a eles falta a consciência de realiza-los e com isso a capacidade de interpretá-los. São, muito mais, frutos de sua programação genética ou reações a estímulos produzidos pelo entorno.  A habilidade de simbolizar é tipicamente humana. Com isso, queremos ligar o fenômeno do gesto ao fato de – com ele, por ele e nele – fazermos acontecer a nossa humanidade. Esta maneira de ver o gesto é importante quando se trata de estudar a Liturgia. Sobretudo se a verificarmos como memória dos gestos de Jesus de Nazaré.

A Liturgia se radica na gestualidade de Jesus

A Constituição Sacronsanctum Concilium  aponta exatamente nesta direção quando afirma que “quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza (…) é Ele que fala quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura.”[3]  São gestos do Senhor Ressuscitado que se dão pela mediação da gestualidade eclesial. Gestos que, por sua vez, encontram explicação no acontecimento da encarnação que se fez conhecer nos encontros diversos de Jesus na Palestina do século I de nossa era. Aqui se entende que a fé cristã tem sua “pedra de toque” na corporeidade. A autenticidade da experiência cristã se dá em sua referência permanente à carne. O Espírito a procura, a deseja. Louis-Marie Chauvet afirma que a originalidade cristã reside exatamente nos polos encarnação-ressurreição.[4]  A justificativa ritual para a liturgia cristã está inserida nesta novidade que define o cristianismo – a corporeidade – como lugar e ocasião para que Deus se revele e se comunique.  Em especial a corporeidade de Jesus. Os gestos aos quais nos referimos, portanto, configuram-se como “voz do Espírito”[5] . Estes gestos realizam e revelam a personalidade espiritual de Jesus.[6]  Conforme dissera Romano Guardini o cristianismo é, sobretudo e em certo sentido, a pessoa mesma de Cristo.

 

Cf. BOSCIONE, Franco. Los gestos de Jesús. La comunicación no verbal en los Evangelios. Madrid: Marcea, 2004, p. 21-22.
2  Cf. idem, p. 23.
Sacrosanctum Concilium 7.
Cf. CHAUVET, Louis-Marie. La umanità dei sacramenti. Bose: Ed. Qiqajon, 2010, p. 92-93.
5 Expressão que se encontra como título em um dos capítulos do livro de Franco Boscione, Los gestos de Jesús.
6 Cf. BOSCIONE, Franco. Los gestos de Jesús, p. 30.

 

 

Padre Márcio Pimentel
Liturgista



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