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Uma gestualidade perigosa

 

Há pouco mais de quinze anos, por ocasião do 10º Encontro Nacional das Comunidades Eclesiais de Base, em Ilhéus (BA), o Pe. José Oscar Beozzo, fino conhecedor da história da Igreja e, particularmente, grande estudioso do Concílio Vaticano II, resgatava uma expressão quiçá esquecida do vocabulário teológico: a memória perigosa de Jesus. Esta frase ganhava sentido dentro do contexto celebrativo do ano 2000, quando as CEBs forjavam a comemoração de seu itinerário evangelizador e do significado que portavam como células vivas da Igreja, responsáveis por levar adiante tudo quanto o Senhor confiou ao seus discípulos para que fosse transmitido com grande força profética.

 

Aquele que se assume Filho Amado do Pai não poupa esforços em constituir uma gestualidade que defina as relações a partir deste fato que se torna, também, propósito para todo ser humano que dEle se aproxime

Essa expressão foi cunhada pelo teólogo alemão João Batista Metz, para falar do significado profundo que a solidariedade, com o sofrimento dos outros, deve possuir para os cristãos, abrindo caminhos verdadeiramente libertadores.  Sabe-se que Metz foi grande inspirador da teologia da libertação latino-americana, através de sua “teologia política”. Segundo esse teólogo, a memória perigosa de Jesus se radica na compaixão pela humanidade. Não é difícil perceber que a gestualidade de Jesus, que a Liturgia desnuda e nos faz absorver e comunicar, exprime essa “memória perigosa”. As narrativas evangélicas que conferem sentido e horizonte para as relações humanas no quadro do testemunho da fé cristã revelam com paixão e ardor a compaixão de Jesus. Seus gestos transbordavam solidariedade para com o sofrimento das pessoas e isso se tornava uma faísca libertadora.

 

Os gestos de Jesus, radicados na compaixão e misericórdia de seu Pai conferem a ele uma “gestualidade perigosa”, fazendo uma paráfrase à famosa expressão de Metz. Perigosa porque desafia o status quo de seus contemporâneos, sustentado por uma tradição que o Evangelho de Marcos denomina “meramente humana”: “Vós abandonais os mandamentos de Deus para seguir a tradição dos homens.”[1] Essa sentença de Jesus situa-se no contexto da discussão sobre a prática incomum dos discípulos em não lavar as mãos antes das refeições, o que contrariava a percepção religiosa dos seus opositores, segundo o Evangelho. Uma vez que “a ocasião faz o ladrão”, Jesus aproveita a circunstância para “roubar” a cena e mudar o foco da discussão apontando para a insensível experiência religiosa dos fariseus, que não se radica na interioridade transformada pelo Verbo e que se disfarça de exterioridade sublime. Jesus, perigosamente, por seu gesto cheio de parresía, desmonta a lógica hipócrita dos fariseus e mestres da Lei que se opõem ao seu ministério de pregador itinerante.

 

Contemplando essa cena e tantas outras nas quais Jesus desafia e transgride os costumes instalados como interpretação – inclusive legítima – da Sagrada Escritura, notamos que sua autoridade provém da compaixão e misericórdia divinas. Há uma conexão perfeita entre sua interioridade (motivações, opções, desejos) e sua exterioridade (gestos, palavras, atitudes). Sua carne, de fato, realiza e transmite o espírito que o anima. Aquele que se assume Filho Amado do Pai não poupa esforços para constituir uma gestualidade que defina as relações a partir deste fato que se torna, também, propósito para todo ser humano que dEle se aproxime. Por causa desse tesouro, que a Bíblia chama de promessa e a tradição litúrgica, de herança, Jesus não se amedronta, ainda que por sua gestualidade e palavra tenha que “transgredir” padrões culturais ou religiosos. A Liturgia nos insere nesta gestualidade perigosa porque nos admite à memória perigosa de Jesus, como diria Metz.

[1] Mc  7,8.
 



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