É necessário abraçar a cruz inteira, não apenas o discurso que me agrada, a comunidade que não me questiona, o padre que não me |
Pe Danilo César*
O domingo que acabamos de celebrar nos coloca em uma encruzilhada da estrada de Jesus e de seus discípulos: seguir para Jerusalém, ou recuar? Na cidade Santa se dará a paixão de Jesus e sua morte vergonhosa na cruz. Paradoxalmente, essa é a expressão máxima da rejeição da humanidade à oferta de salvação que Deus nos faz, mas também lugar da oferta amorosa e voluntária da vida de quem tanto nos amou por fidelidade ao Pai.
A decisão de Jesus se configura a partir de vários elementos que foram se delineando nos últimos domingos que celebramos: a consciência cada vez mais aguda dos acontecimentos relativos à sua páscoa,1 a sua identidade frente à habitual profecia e à ideia de messianismo vigente,2 a necessidade de combater a incompreensão dos discípulos que reflete a mentalidade da época. Permanece pouco claro para eles quem é o Mestre a quem seguem. Um exemplo disso é a atitude de Tiago e João. Ao modo de Elias, eles propõem ao Mestre fazer descer fogo do céu para devorar os Samaritanos que não querem recebê-lo. São repreendidos pela severidade, que não se harmoniza com a profecia de Jesus. Nessa encruzilhada, acontece algo do tipo, “entrar numa via pela contramão”. A sensação de estar “remando contra a maré”… O desconforto fica mais acentuado e muitos preferem seguir o fluxo, a enfrentar com Jesus o que vem pela frente.
Tempo de voltar para o céu
O início do evangelho diz claramente o momento desse caminhar. Na liturgia, a tradução oferecida é esta: “estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu”. Mas, segundo o original, a tradução é: “quando se completaram os dias de sua assunção”. Usando o substantivo grego analépseos (assunção), o evangelista faz uma clara referência ao mistério da páscoa. No mesmo versículo 51, uma alusão literária ao servo do Senhor, de Isaías (cf. Is 50,7), onde se lê que o servo “endureceu o rosto como pedra”, Lucas diz que Jesus “endureceu o rosto a fim de partir para Jerusalém”. Tal referência aprofunda ainda mais o contexto do caminho que empreende Jesus, pois o servo da profecia de Isaías, como Jesus, é aquele quem dará a sua vida pela multidão, sofrerá as bofetadas e cusparadas, terá arrancada a barba, será macerado em favor de muitos, carregará sobre si as nossas culpas…
Nesse contexto, já antecipado pelos anúncios da paixão, pelo vislumbre do sofrimento, muitos dos que acompanham Jesus começam a recuar. Dois se oferecem para seguir Jesus pelo caminho. Ao primeiro Jesus adverte para a extrema insegurança de segui-lo: “as raposas têm tocas e os pássaros do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (v.58). Ao segundo, que quer se despedir de seus familiares, Ele dá sua sentença: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (v.62). Entre os dois, Jesus chama a outro “segue-me”, o qual responde ter de ir primeiro enterrar o pai… Outra sentença de Jesus soa duro aos nossos ouvidos: “deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus” (v.60). Como entender essas respostas de Jesus? Parecem-nos tão desumanas e até contraditórias se pensarmos que enterrar o pai significava obedecer ao mandamento de “honrar pai e mãe” e realizar obras de misericórdia (cf. Tb 14,10-13).
É bom não esquecermos o contexto. Ele ajuda a superar o paradoxo do provérbio de Jesus. A hora é de decisão, não deixando que nada interrompa o caminho para Jerusalém: nem a falta de segurança, nem os laços familiares, nem a morte que a tudo interrompe. O caminho de Jesus leva à cruz, mas também à ressurreição, conforme ele mesmo anunciou previamente. A chegada do Reino que se inaugura com sua presença, mas sobretudo com sua morte e ressurreição que se avizinham, tem uma urgência. É preciso tomar uma firme decisão, endurecer o rosto.
“Desculpas esfarrapadas”
Lido assim, o evangelho nos mostra que os dois que se propõem ao caminho de Jesus e aquele a quem Jesus chama, deixam o seguimento para depois. Fica em evidência outro descompasso entre Jesus e os que o acompanham: enquanto ele toma uma firme decisão, sem adiamentos, seus seguidores titubeiam, dando desculpas… Poderíamos objetar, dizendo que não são adiamentos sem motivos. Mas novamente o contexto define a necessidade de uma opção mais profunda, de raiz (radical). A hora de Jesus é de assunção ao céu. Sua decisão é sem volta. Os motivos apresentados pelos discípulos sugerem que eles ainda não estão entendendo o momento e a urgência do anúncio do Reino, sobretudo pela voluntária entrega que Jesus se propõe a fazer da sua vida. Nesse sentido, a segunda leitura nos oferecerá uma importante chave para compreender a fonte da resolução de Jesus e a indecisão dos discípulos.
Os impulsos da carne e os impulsos do Espírito
O impulso espiritual, contudo, nos coloca no caminho de Jesus,dispostos a sermos servos como Ele e, isso, de modo decidido, firme. Significa, em termos evangélicos, entrar com Jesus na contramão dos impulsos naturais |
Paulo, na sua carta aos Gálatas, faz importante distinção entre os desejos da carne e os desejos do espírito (cf. Gl 5,17). Falar em “desejos da carne” soa aos nossos ouvidos como “desejos sexuais”. Trata-se de uma redução, um foco viciado, uma tara. Seria melhor entender como os impulsos da natureza, que se colocam como obstáculos aos impulsos do espírito. Eles são muitos, e incluem também os sexuais, contudo, não podem ser reduzidos a eles. Seguimos os impulsos da carne quando, numa refeição de família, ficamos presos ao celular; quando nos deixamos levar pela agressividade e o ódio que nos limitam a reflexão e o discernimento; quando, em comunidade, “devoramos uns aos outros” (cf. v.15). Seguimos os impulsos da carne quando esquecemos os procedimentos do Espírito (v.16), que nos transforma em servos uns dos outros.3 Jesus é aquele que, na sua imensa liberdade, se faz servo de todos (cf. v. 13), vencendo-se a si mesmo, na sua decisão de partir para Jerusalém.
Viver na comunidade o caminho da cruz significa viver livremente, ao ponto do serviço mútuo, como impulso espiritual que não se rende ao impulso natural do egoísmo. O impulso natural (desejo da carne) é que nos devoremos uns aos outros, nos consumindo e fazendo o que não gostaríamos (cf. v.15.17). O impulso espiritual, contudo, nos coloca no caminho de Jesus, dispostos a sermos servos como Ele e, isso, de modo decidido, firme. Significa, em termos evangélicos, entrar com Jesus na contramão dos impulsos naturais, seguindo não pela estrada da autopreservação, da autodefesa, ou do adiamento da opção pelo Reino de Deus, mas, de modo resoluto, na direção do serviço que gera vida.
O que já acontece de algum modo…
Vemos isso acontecer entre nós: tantos irmãos e irmãs que dedicam sua vida às pastorais das comunidades, muitas vezes renunciando à tranquilidade e aconchego familiar para abraçar outra família, a família espiritual que se propôs a viver o caminho da cruz de Jesus. Também em nossas comunidades, muitas vezes, o embate contra os impulsos naturais são grandes e tensos. Por vezes nos esquecemos que somos regidos pelo Espírito. Mesmo assim, muitos ainda permanecem e acreditam por fidelidade ao Mestre, por enxergarem que entre nós também existem os que abrem mão, os que se dispõem aos outros, os que perdoam para não entrar na lógica do “se devorar”, os que abandonam as fofocas e intrigas, os que se deixam conduzir pelos desejos do mesmo Espírito que conduziu Jesus. Contudo, como estamos em acabamento, os embates entre os desejos da carne e os desejos do espírito estarão sempre presentes… Vivemos na tensão das duas forças, buscando ceder ao Espírito, nossa principal regência.
Vivem igualmente o impulso espiritual aqueles que, independentemente da religião e da fé, se colocam na sociedade dedicando-se a causas humanitárias: educadores, profissionais da área de saúde, assistentes sociais, comunicadores… Poderiam viver na indiferença, mas encontram motivos para, no serviço, se doar ao próximo. Tanta coisa acontece longe dos nossos olhos e para fora dos nossos muros. O Espírito Santo, que sopra aonde quer, rege também outras sinfonias do Reino, no caminho da cruz e ressurreição.
Uma liturgia que nos provoca
Ela ( a cruz) nos chama à maturidade espiritual, estágio em que não cabem mais as posturas infantis e imaturas, de impor condições e fazer pirraças; seguir Jesus requer a decisão e a maturidade do Espírito |
A liturgia desse domingo que passou foi provocativa… é função do rito operar uma crise, um reforço na vida dos fiéis. Do contrário, recairíamos em ritualismo. A Palavra de Deus que nos chamou no domingo, “vem, segue-me”, nos chama continuamente para a cruz na contramão das tendências da sociedade e da cultura. A cruz com a qual iniciamos e terminamos a missa, que santificamos os nossos dons sobre o altar, que traçamos em nossas mentes, lábios e corações para ouvir essa mesma Palavra, nos alerta, como gesto fecundo, para o risco de um cristianismo sem cruz, sem decisões, morno, e feito de adiamentos. A cruz nos alerta para refletirmos sobre um cristianismo vivido como quem entra num restaurante self service: “isso eu quero, aquilo eu não quero”. É necessário abraçar a cruz inteira, não apenas o discurso que me agrada, a comunidade que não me questiona, o padre que não me contraria, os irmãos que não batem à minha porta…
Somos provocados a uma proposta muito clara de Jesus que assume o peso da cruz dos nossos pecados, Ele que não tinha pecado (cf. 2Cor 5,21). Essa proposta também deveria ser clara para nós: abraçar a cruz que não é apenas a nossa, mas também as dos outros, fazendo-nos no amor, servos uns dos outros (cf. Gl 5,13b-14). Ela nos balança, fazendo-nos rever o que temos vivido em termos de seguimento, em termos de opções. Ela nos chama à maturidade espiritual, um estágio em que não cabem mais as posturas infantis e imaturas, de impor condições e fazer pirraças. Seguir Jesus requer a decisão e a maturidade do Espírito.
Rezando de um jeito novo uma antiga oração
Uma oração, atribuída a São Bento, muito rezada na piedade popular como oração exorcística, bem poderia ser rezada como forma de ressoar a nossa meditação sobre o caminho da cruz:
A Cruz Sagrada seja a minha luz.
Não seja o dragão o meu guia.
Retira-te, Satanás!
Nunca me ofereças coisas vãs.
É mau o que tu me ofereces.
Bebe tu mesmo do teu veneno!
O pior veneno é o dragão que está dentro de cada um de nós: os impulsos naturais que nos aprisionam e nos roubam a liberdade cristã. Ele nos devora interiormente, dia a dia, tirando-nos do caminho de Jesus e dos irmãos, do caminho da cruz! Envenenamos a nossa vida quando nos viciamos no egoísmo e em nós mesmos, fechando-nos para a cruz do outro, que bem poderia nos iluminar. Rezemos a oração de São Bento para nos colocar no caminho da cruz de Jesus, em comunidade, servindo uns aos outros na liberdade… Exorcismo bom nos faria essa reza!
*Padre Danilo César Santos Lima é liturgista e pároco
da Paróquia Santana, na Arquidiocese de BH