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Tomados pelo espírito do descuido – artigo do Padre Wagner Calegário – Paróquia Bem-Aventurada Dulce dos Pobres

A atrofia do primeiro nível do ato de “cuidar” faz com que matemos nossos filhotes pela droga, pela violência doméstica, … pela substituição da presença de pais por presentes. Tornamo-nos, assim, predadores de nós mesmos

Os últimos acontecimentos no universo político de nosso país têm, de fato, deixado evidente a dificuldade de se entender o que significa cuidar de algo ou de alguém. Porém, nos últimos dias, acontecimentos ocorridos no pequeno universo em que vivo, deixaram-me inquieto. Na verdade, me defrontei com algo já conhecido, porém, nunca tive condições de olhar nos olhos do “espírito do descuido aproveitador”. Claro que não tenho a pretensão de discorrer para os acadêmicos, já que conheço meu lugar. Escrevo do lugar existencialmente tocado pelo olhar do horrendo e nomeado espírito. Se erro ou se escrevo o que não devo com o cuidado que todos merecem, peço perdão.

O “descuido”, como entendemos bem, nada mais é do que a junção do prefixo “des”, que significa “falta”, “ausência”, com a palavra “cuidar”, que, segundo o dicionário Houaiss, vem do Latim Cogito, que significa ‘remoer no pensamento, pensar, projetar’. Assim, podemos entender que descuido significa falta de pensamento. Mas, entendamos bem, a falta de pensamento projetado ou direcionado a algo ou a alguém. E quando falo descuido aproveitador, é a falta de pensamento que deixa de voltar-se para o bem de algo ou de alguém, aproveitando-se de situações para conseguir vantagens.

Então, quando falamos de “espírito do descuido aproveitador”, aqui nos referimos a uma tendência cada vez menos velada, e muitas vezes incentivada, de ignorar as pessoas em suas situações e necessidades, tirando proveito da “desgraça dos outros”.  Se a manifestação crescente desse “espírito” nos escandaliza quando falamos de renomados políticos, pouco nos assusta a manifestação do mesmo espírito em nossos pequenos círculos de convívio. De fato, a corrupção e o superfaturamento de obras públicas demonstra a insensibilidade e o DESCUIDO de homens e mulheres que são designados para cuidar dos interesses básicos de todos. Contudo, é também de conhecimento geral que o mesmo descuido aproveitador se coloca à frente de todos nos lugares mais simples e tidos como “comunidades”, onde é grande o auxílio mútuo. Lamentável engano!

Não são poucas as pessoas que manipulam entidades como ONG’s, Associações de Bairro, Creches, Igrejas para tirar vantagem pessoal, aproveitando-se sem pensar, no mínimo, naquilo que nos iguala: vamos todos morrer!  Entretanto, isso não toca muitas pessoas, por pensarem que o que conta mesmo é aproveitar cada dia como se fosse único, mesmo que para isso seja preciso pisar na cabeça de outra pessoa, ou tirar dela o que ela nem mesmo tem. Afinal, “antes fazer com ela do que fazerem comigo”, ou ainda, “todo mundo faz assim”. A manifestação desse espírito perverso, que nos perverte, conduz os que por ele vão sendo possuídos ao atrofiamento de dois níveis que todos temos e que nos inclinam para o cuidado.

O nível puramente instintivo, comum a todos os outros animais. Nesse nível, temos o pensamento mínimo de salvaguardar a espécie. Aqui, os animais defendem seus filhotes; a caça alimenta todos e a defesa da espécie faz com que grupos de indivíduos da mesma espécie fujam juntos de seus predadores ou, juntos, os enfrentem. A atrofia do primeiro nível do ato de “cuidar” faz com que matemos nossos filhotes pela droga, pela violência doméstica, pelo aliciamento e incentivo sexual  prematuros, pelos atos de aborto, pela substituição da presença de pais por presentes. Tornamo-nos, assim, predadores de nós mesmos na luta por lugares e postos nas ONG’s, Associações de Bairro, Igrejas e Creches, muitas vezes, fontes de renda para seus líderes que se agarram ao pescoço da instituição para sugar suas verbas como vampiros que sugam o sangue de um animal doente. Esse animal doente é a humanidade empobrecida. E, de fato, a humanidade se encontra doente!

Outro nível do cuidar, que todos temos, é o da razão que nos condiciona para a sociabilidade. Ora, desde que mantemos a comunicação e a linguagem, expressamos sentimentos nos seus níveis diversos, evitamos que outros se machuquem, ou mesmo nos machuquem,  delimitando espaços invisíveis para que não agridamos e não sejamos agredidos uns pelos outros; utilizamos de nossa razão para melhor viabilizar nossos recursos, garantindo a qualidade de vida a todos; estabelecemos regras que garantam a dignidade mínima para todos, como alimentação, moradia, saneamento básico, saúde, educação e segurança. Entretanto, após o primeiro nível do cuidado ser corrompido, inevitavelmente, o atrofiamento chega e chaga o segundo. Pela busca de satisfazer às necessidades tidas como próprias, a comunicação fica cada vez mais escassa, superficial e virtual: pouco se conversa, na busca de se fazer compreendido e compreender, tornando as feridas da alma cada vez mais profundas, já que não há limites para invasões, seja da privacidade, seja do que é público; a razão é utilizada para manipular, extorquir, ou mesmo matar pessoas, com a finalidade conseguir o que se quer (afinal o que são os jovens das bocas de tráfico, senão instrumentos de razões manipuladoras?); regras básicas que garantem a dignidade mínima para todos são instrumentos de arrecadação, sejam do voto, sejam de verbas que serão desviadas.

Os níveis do cuidado, comuns a todos, são atrofiados pelo “espírito do descuido aproveitador”, pois na passagem de ônibus, ou na definição de quem irá administrar tal setor deve servir ao proveito de alguém. O pensamento volta-se para o umbigo do homem e da mulher que passam a agir e a pensar afim de salvar o que não é seu, pois a única coisa que realmente tem, a vida, será perdida num período curto de tempo. De fato, num tempo em que palavras do tipo, “amor”, “carinho”, “atenção”, “cuidado” tornaram-se discurso, a possessão do humano pelo “espírito do descuido aproveitador” nos diminui a uma condição abaixo dos animais – condição essa em que nenhum homem merece se deixar colocar. Não prezamos pela espécie e pela vida, que só podem resistir no conjunto orgânico vital a que somos chamados a cuidar.

Creio que o cuidado nos faz ascender a uma condição quase divina, pois o olhar e o pensamento ao dirigir-se a outra pessoa e ao bem que ela merece revela àquele que está à minha frente sua dignidade; acende-lhe a centelha motriz que o leva a retribuir tal reconhecimento. Porém, esse processo pode levar tempo. Mas no mundo virtualizado e imediato, não se pode perder tempo. E como cuidar, requer dedicação de tempo, coisa em que não se vê retorno imediato, buscamos engordar nossos investimentos. Desse modo, enquanto as cifras sobem, o cuidado regride nos subanimalizando.

O “espírito do descuido aproveitador” se mostrou a mim com um olhar vampiresco! Contudo, ainda que repleto de medo, não esmoreci. Recordei-me do valor e dos valores vitais de minha vida e da vida de todos. Sei que ele é forte! Porém, não quero alimentá-lo! Ao contrário, conhecendo a humanidade que há em mim, na busca de um crescimento progressivo, quero exorcizá-lo! E, o que me dá forças é saber que outros também lutam para extirpá-lo de nosso meio. Mesmo que desconhecidos, numa massa adormecida desde junho de 2013, sei que quando despertarem de verdade, farão com que pelo menos o Brasil, exorcize o imundo “espírito”, e assim redescubramos o que significa cuidar:  pensar, remoer o pensamento, na busca do bem de uma pessoa cujo nome nada mais é do que o velho e desconhecido “NÓS”.

 

Padre Wagner Calegário é administrador paroquial

da Paróquia Bem-Aventurada Dulce dos Pobres,

Vila Santana do Cafezal



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