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Sobre Cura e Libertação (parte 1)

Um dos livros dentre os quais retomei a leitura, “o que a fé não é”, me fez recordar alguns assuntos espinhosos em matéria litúrgica. Dentre esses está a problemática das missas de cura de libertação. Já que a Liturgia da Igreja constitui-se “fé em ato”, interferir  seu contexto ritual e eucológico arbitrariamente como costuma ocorrer nestas ocasiões é preocupante.  É exatamente no contexto celebrativo que poderemos encontrar desde as mais belas expressões da fé, às mais delirantes e – porque não – heréticas maneiras de exprimi-la e realizá-la.

O caso das chamadas Missas de Cura e Libertação trazem consigo questões complexas e ao mesmo tempo interessantes na compreensão e experiência do mistério de Cristo e do ser humano que a Liturgia da Igreja encerra. Pessoalmente, minha opinião de teólogo da liturgia é que estas celebrações trazem um defeito de base: transformam o médico e o devir terapêutico em medicamento. E foi exatamente neste ponto que o livro de Mitch Finley me ofereceu alguns insights, os quais compartilho neste breve artigo. Sua primeira reflexão se intitula “a fé não é uma aspirina espiritual”. Dentre suas afirmações que me parecem mais pertinentes está a seguinte: “a fé de Jesus não o salvou da dor e do sofrimento, nem durante sua vida, nem enquanto morria pendurado na cruz. Portanto seria inadequado pensarmos a fé como  uma forma de escapar da dor e do sofrimento, como uma espécie de novocaína espiritual.”[1]  Se para Jesus foi assim, igualmente será inadequado transformar os ritos com os quais a Igreja recorda sua vida e a nos impregna com sua presença em um mero fármaco que nos livraria desta ou daquela dor.

As celebrações da Igreja, todas e cada uma, reúnem em si e realizam esta missão de Jesus – integralmente. Jesus, como aquele que nos preside em cada ação litúrgica não é um farmacêutico e os ritos – suas ações – não são comprimidos ou xaropes

Em hipótese alguma significa desconsiderar a perspectiva terapêutica que é inerente à fé cristã. Como muito bem nos recorda Eugen Biser, “o cristianismo é uma religião terapêutica.”[2]  A cura dos doentes e enfermos e a expulsão dos espíritos maus foram traços característicos do ministério de Jesus. Entretanto, a finalidade da ação terapêutica de Jesus residia na retirada de todo obstáculo – inclusive doenças, enfermidades e possessões – no processo de restabelecimento da dignidade filial que Ele recebe do Pai como missão. O que está em jogo, portanto, não são as feridas que necessitam ser curadas, mas a qualificação da vida de cada homem e mulher como experiência de filho e filha amada por Deus. Ed René Kivitz em seu Talmidim, o afirma explicitamente: “eu imaginava (quando me tornei discípulo de Jesus) que poderia contar com seus favores para resolver meus problemas cotidianos, afinal Jesus é mestre em milagres. Mas com o passar do tempo fui percebendo que o chamado de Jesus era muito mais profundo. Ele queria que eu me tornasse outro tipo de pessoa. Um tipo de pessoa exatamente igual a ele.”[3]  

Neste sentido, para aplicar a Jesus o apelativo de “médico” e desdobrarmos as consequências no que se refere à Liturgia, é preciso situar sua ação curativa no contexto do cuidado, como fruto da compaixão e misericórdia que o habitam.  Assim, a Sacrosanctum Concilium começa por afirmar que Deus, em seu Filho, Palavra encarnada, ungido pelo Espírito, foi enviado para “anunciar a boa nova aos pobres, curar os contritos de coração, ‘medico da carne e do espírito’, mediador entre Deus e os homens.”[4]  Ao encarnar-se, portanto, a missão de Jesus é anunciar o evangelho, curar os corações, cuidar do ser humano integral e ser pontífice entre Deus e a humanidade. As celebrações da Igreja, todas e cada uma, reúnem em si e realizam esta missão de Jesus – integralmente. Jesus, como aquele que nos preside em cada ação litúrgica não é um farmacêutico e os ritos – suas ações – não são comprimidos ou xaropes.

 

Inácio de Antioquia em sua Carta aos Efésios afirma Jesus como médico do ser humano porque “em Cristo realizou-se o pleno cumprimento da nossa reconciliação e foi-nos dada a plenitude do culto divino”.[5]  Ao associarmo-nos, pelo Batismo, Crisma e Eucaristia, à pessoa de Jesus, tendo sido iniciados em  seu Evangelho, podemos ter a sua vida em nós e, como filhos e filhas no Filho, viver neste mundo com um novo proceder. A Liturgia por seus ritos e preces não tem por função curar doenças psicossomáticas ou de qualquer outra ordem, mas resgatar e conservar em nós a humanidade de Cristo e assim estabelecer decisivamente nosso vínculo com Deus, permitindo-nos participar da vida divina. Utilizando uma metáfora empregada por Crispino Valenziano, os sacramentos da iniciação nos dão o DNA divino: a filiação. A Liturgia deve por em movimento este DNA. Quando não o faz, é rito e nada mais, muito mais próxima da magia do que do memorial que as celebrações devem se constituir.[6]

Pe. Márcio Pimentel

Liturgista

contato@domusecclesiae.org

1  FINLEY, Mitch. O que a fé não é. São Paulo: Loyola, 2004, p. 12.
2  BISER, Eugen. Citado por PAGOLA, José Antonio. O Caminho aberto por Jesus. Marcos. Petrópolis: Vozes, 2013.
3  KIVITZ, Ed René. Talmidim. O passo a passo de Jesus. São Paulo: mundocristão, 2012, p. 8.
4  Constituição Dogmática sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium n.5 . Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2002.
5 Inácio de Antioquia. Carta aos Efésios 7,2. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos,  patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Lituriga, 2003, n.219, p. 102.
6  Cf. GRILLO, Andrea, VALENZIANO, Crispino. L’uomo della Liturgia. Assis: Citadella Editrice, 2007, p. 101.



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