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Sobre a “utilidade” da Liturgia (II)

 

Há duas semanas, concluíamos a primeira parte de nossa conversa com a afirmação de Romano Guardini sobre a inutilidade prática da Liturgia. Para o teólogo alemão, não se deve reduzir as celebrações da Igreja à esfera do pragmatismo, estabelecendo seu horizonte de sentido para além dela mesma. Com isso, é bom que se repita, não se quer dizer que as celebrações litúrgicas não possam ser consideradas a partir de outras aproximações – catequética, doutrinal, pastoral, ética. Quer-se apenas evidenciar o fato de que seu valor se encontra em seu fazer-se. Assim como um encontro,com os amigos pode tornar-se uma ocasião altamente educativa e por assim dizer, produtiva para as pessoas envolvidas, o que define o encontro não é a desculpa ou interesse pedagógicos. Seria instrumentalizar o encontro para um fim que não está necessariamente em sua essência. Um encontro com os amigos para um café ou um chá faz-se um acontecimento com sentido em si mesmo: alegra-se coma presença uns dos outros.

 A Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium vê na Liturgia a fonte e cume da vida cristã (culmen et fons). Isso porque nela se pode reconhecer presente o evento máximo da Revelação Divina, que é o Filho amado do Pai encarnado. No encontro litúrgico, isto é, quando fazemos assembleia para celebrar tornamo-nos contemporâneos deste fato. Pela via ritual, adentramos no ritmo autocomunicador de Deus que se deixa narrar na existência total do Filho. Em Jesus, por seus gestos e palavras, o Pai se doava.

 

O sentido que a Liturgia possui, portanto, não lhe é exterior ou posterior Sua importância não se radica nem mesmo nos “frutos” que poderão vir (e certamente virão)
Mas no interior do próprio acontecimento cultual

As pessoas adoravam ficar próximas de Jesus, sobretudo por que contemplavam o Senhor em seu rosto. Desta proximidade, que na vida discipular tornava-se intimidade e amizade, surgia o novo ser humano. Embora algumas pessoas procurassem Jesus interessadas naquilo que ele podia “produzir” para elas – como no caso dos pães multiplicados segundo o evangelho de João – permanecer de modo mais demorado em sua companhia era um convite para um relacionamento muito mais profundo e menos interesseiro. Logo podiam ter os olhos abertos e reconhecer em Jesus alguém que – por sua palavra e gesto – oferecia algo mais duradouro que pão e peixe. As pessoas descobriam que o sentido do encontro com Jesus não era, portanto, o que ele podia proporcionar para elas, mas era Ele mesmo. Permanecer com Ele. Fazer amizade, conviver, estabelecer um vínculo que – por decorrência – transformava (e porque não dizer também, transtornava!) quem aceitasse ser seu seguidor e tomar parte em sua comunidade.

A Liturgia, por seus ritos e preces, retoma no Corpo da Igreja o acontecimento primordial da fé: Jesus comunicando a partir de si mesmo, compartindo sua vida numa atitude perfeitamente oblativa e sacrifical. Aí é que a Liturgia encontra sua razão de ser, firmando-se como fenômeno que transforma e transtorna.  

O sentido que a Liturgia possui, portanto, não lhe é exterior ou posterior. Sua importância não se radica nem mesmo nos “frutos” que poderão vir (e certamente virão). Mas no interior do próprio acontecimento cultual: primeiro o Reinado de Deus, o restante vem por acréscimo, ensina o Evangelho. Pois muito bem, as celebrações litúrgicas são o exemplo vivo desta máxima que Mateus nos legou em sua narrativa. Só assim a Liturgia pode ser o horizonte do caminhar eclesial e também sua força propulsora. A vida espiritual, outra maneira de falar da vida cristã ou vida segundo a pessoa de Jesus ou conforme o seu Espírito, brota e se enraíza neste acontecimento que a Liturgia desencadeia por seus ritos. Esta mesma vida, para que continue fincada na rocha que é o Senhor, necessariamente desemboca na ação litúrgica que recria em nós e entre nós o encontro com o Senhor.

Pe. Márcio Paiva
Liturgista



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