Interromperemos nossa série de publicações sobre a “Missa de Cura e Libertação” para tratar brevemente da última intervenção da Santa Sé na Liturgia, ao modificar as rubricas do rito do lava-pés, realizado na Missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa.
Também conhecido como mandatum, porque recorda a ordem de Jesus expressa e transmitida pela tradição joanina em seu evangelho, para que os discípulos e discípulas lavem os pés uns dos outros a exemplo do Mestre e Senhor, o lava-pés pode agora – oficialmente – retomar seu pleno significado. Numa carta datada de dezembro de 2014, o Papa Francisco solicitou à Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, que realizasse uma modificação nas rubricas a respeito do lava-pés. A referida Congregação, mais de um ano depois, expediu o decreto, no qual apresenta a nova rubrica a ser seguida, repetindo o teor da motivação pontifical.
Algumas questões interessantes podem ser discernidas neste episódio, que embora pareça “de última hora”, pois estamos às vésperas da Quaresma, foi de antemão preparado pelo Papa Francisco não por uma carta, mas por seu próprio gesto na Semana Santa de 2013. Lembremos que, na ocasião, celebrando num presídio, Francisco lavou os pés de… o que gerou burburinhos sobre sua ignorância litúrgica ou mesmo a respeito de seu desrespeito quanto às regras que regem as celebrações da Igreja.
O primeiro elemento a ser considerado, é que o Papa operou uma mudança simples completamente dentro do que se convencionou chamar de “o espírito do Concílio”. Em matéria litúrgica, significa interferir nos ritos e preces com os quais a Igreja celebra, com o intuito de torná-los mais de acordo com seu significado teológico e – claro – evangélico. Devolver e resguardar as raízes bíblicas da ritualidade cristã é um trabalho perene, ao qual se dedicam tanto as autoridades eclesiásticas (Santa Sé e Igrejas Locais) quanto os teólogos e teólogas da Liturgia. Assim, o lava-pés (bem como outros ritos) podem ser conectados diretamente ao Cristo, seja porque vinculados à sua criatividade direta, ou indireta, já que a Igreja é seu Corpo e é regida pelo mesmo Espírito que possibilitou a encarnação do Verbo.
Esta mudança, primeiramente, alcançou a natureza de ação simbólica do lava-pés. Devolveu-lhe o caráter de rito. Isto é importante porque em muitos lugares o Mandatum não passava de teatro. Circunscrito à participação masculina de doze pessoas, vestidas “à caráter”, isto é, representando teatralmente os apóstolos, deixou de ser algo para ser participado (rito) para ser assistido (espetáculo). O Rito, para os cristãos é mediação do evangelho e não apenas invenção cerimonial religiosa. Por ele, o Verbo continua a tornar-se carne no Corpo da Igreja.
Ao falar do “significado” do gesto ritual, o Papa deu um passo na direção proposta pelo Concílio Vaticano II quando deliberou sobre a necessária reforma dos ritos que – com o passar do tempo – foram perdendo sua “transparência”, porque não mais pareciam comunicar e dar acesso ao Mistério. Todo o edifício da reforma litúrgica foi construído sobre estas bases. Este influxo pós-conciliar – infelizmente – acabou sendo comprometido nos últimos vinte anos e graças à ignorância sobre o assunto, às posturas ideológicas no seio da Igreja e mesmo à mudança de impostação sobre a própria Liturgia às vezes na direção oposta ao Concílio. Agora, parece surgir uma brisa que areja nosso ambiente. A razão do Papa é claríssima: “Expressar plenamente o significado do gesto realizado por Jesus no Cenáculo, o seu doar-se ‘completamente’, para a salvação do mundo, a sua caridade sem limites”.[1] Este significado comunicado pelo rito proporciona que os fiéis configurem sua vida a Cristo, associando-se, pelo gesto e palavra (no caso, o canto que acompanha a ação ritual, extraído de passagens do evangelho de João). Assim o afirma o Secretário da Congregação para o Culto Divino em artigo no L’oservatore Romano: “Cabe a quem cuida das celebrações litúrgicas preparar e dispor todo necessário para ajudar todos a participar frutuosamente deste momento: a vida de todo discípulo do Senhor é memorial (anámnese) do ‘mandamento novo’ ouvido no Evangelho.”[2]
Outro aspecto a considerar é a dimensão profética do ato de Francisco. Andrea Grillo, teólogo da liturgia avalia: “O que aconteceu, em suma? O papa, há três anos já, tinha celebrado a solene missa da Quinta-feira Santa ‘na prisão’, com presos e presas, em meio aos pecadores, com um gesto extraordinariamente eloquente, mas que as rubricas – estritamente falando – não podiam permitir. Inevitavelmente, a profecia ‘transgride’. Esse é um pequeno exemplo de uma ‘fidelidade ao Evangelho’ que não passa pela ‘obediência às rubricas’, mas pela ‘obediência maior’, que pôde parecer – a olhos pouco interessados na história bíblica e nas histórias vividas por homens e mulheres – como uma ‘desobediência’”.[3] Essa dimensão da decisão do Pontífice demostra a vitalidade da Liturgia. Ela pode ser considerada um sistema regrado fechado e apático à história e às próprias fontes, no caso o Evangelho e o desejo do Senhor. Na verdade, como escrevia Dom Piero Marini nos quarenta anos da Sacrosanctum Concilium, a Liturgia é toda a vida do Filho dada pelo Pai a nós, bem como a vida da própria comunidade dos fiéis e de cada cristão e cristã. Para algumas comunidades, esta decisão do Papa Francisco somente legitimou do ponto de vista jurídico o que já se experimentava com o rito do lava-pés. Amparados na regra maior que é o próprio Evangelho, em alguns lugares, os pastores acompanhados por uma Pastoral Litúrgica responsável, inteligente e cuidadosa, já não realizavam o Mandatum conforme as rubricas oficiais. Tinha redescoberto a beleza e importância do gesto do Senhor, e criativamente revitalizaram a ação ritual, devolvendo ao gesto seu pleno significado. É muito bonito – e até de certo modo um incentivo – reconhecer no Pontífice esta mesma inteligência, sensibilidade e atitude. É encorajador.
Nessa direção, Grillo comenta: “Parece-me que, no rastro desse exemplo, podemos encontrar outros casos em que deveremos, mais cedo ou mais tarde, “sair do canto”. De fato, não só o papa tem a possibilidade de ser profeta na Igreja. A profecia compete a cada batizado. Se o papa antecipou profeticamente uma rubrica que não existia, com o seu comportamento ritual, o mesmo acontece em determinados casos com o “povo de Deus” e com o seu “bom instinto”. Muitas comunidades, há tempos, vivem uma pequena “profecia eclesial” pelo modo como recebem e celebram o “rito da paz”. Uma certa “liberdade” de movimento e uma certa “inspiração” no canto – quando mantido dentro de limites razoáveis e acompanhado por sabedoria e por clarividência – são “novidades” que, se olhadas com um olho indiferente por um Escritório, sempre podem ser reduzidos a “abusos”. Pode-se até lamentar que “não se obedecem as rubricas”, como se fazia – a meia voz – até mesmo com o papa. Aqui também as rubricas estão muito atrás da realidade vivida pela Igreja. Colocar novamente no eixo as rubricas com o sensusfidei e com a tradição viva do povo de Deus é um trabalho inesgotável, no qual estamos todos envolvidos. Tanto aqueles que devem “registrar” a mudança, quanto aqueles que devem “assumi-la”, incluindo aqueles que devem “vivê-la”.
Para concluir, o que dá pena é saber que alguns (poucos) cristãos e cristãs, apegados ainda a uma compreensão equívoca ou insuficiente da Liturgia, e em particular da Reforma Litúrgica, deixarão de saborear este presente que o Papa Francisco oferece à Igreja. Sobretudo, aqueles que decidiram celebrar na (controversamente) chamada “forma extraordinária do rito romano” (Missal de 1962), que é regida pelas rubricas pré-conciliares (Pio V), alheias à Reforma Litúrgica. Isso porque as rubricas substituídas são da terceira edição típica do Missal Romano, segundo a forma ordinária (Missal de Paulo VI). Rezemos por eles.
1http://br.radiovaticana.va/news/2016/01/21/rito_do_lava-p%C3%A9s_tamb%C3%A9m_as_mulheres_poder%C3%A3o_ser_escolhidas/1202796. Acesso em 27 de janeiro de 2016.
2 http://br.radiovaticana.va/news/2016/01/21. Idem.
3http://www.ihu.unisinos.br/noticias/551139-uma-liturgia-fiel-ao-futuro-o-qlava-pesq-e-a-qtraducao-da-tradicaoq-artigo-de-andrea-grillo. Acesso dia 27 de janeiro de 2016.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/551139. Idem.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista