Não existe religiosidade ou espiritualidade sem comunidade de vivência e de transmissão |
Em muitos aspectos a assim chamada pós-modernidade consiste na socialização de idéias da modernidade, quer do tempo do fascínio científico-racional da Renascença até o século XVIII, quer do tempo das críticas, do romantismo, dos grandes ideais de liberdade e democracia (século XIX-XX) — tudo isso passado no liquidificador da revolução causada pelas atuais tecnologias e meios de comunicação, até produzir nossa cultura líquida…
As idéias religiosas não escapam dessa liquidificação.
Retomando o sentir do romantismo e até de tempos bem anteriores, veicula-se hoje a ideia de uma religiosidade, ou espiritualidade, sem religião, sem instituição. Ou de um Jesus sem a Igreja, ou mesmo de um Jesus sem Deus (Pai, Criador, Onipotente etc.). Aliás, nossa capital Brasília é um lugar ideal para essas coisas, pois ali encontra-se de tudo.
Mas, sejamos sóbrios. Como poderíamos ter alguma ideia de Jesus se não houvesse uma comunidade que cultivasse sua memória e transmitisse aquilo que desde seu momento histórico se guardou a respeito dele — ainda que misturado a coisas menos seguras, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista do significado?
Como poderíamos falar em “espiritualidade” sem a tradição religiosa que deu a este termo o sentido específico da transcendência? Como poderíamos ter comida chinesa na praça de alimentação de nossos shoppings se não existisse a rede comercial e social (imigração!) que está por trás disso? Só um bobo corta o galho no qual está sentado.Querer os produtos da religião sem sua tradição, sua organização e seus servidores seria como querer a telefonia celular sem as telefônicas.
As pessoas que se sentem incomodadas com termos — antes que conceitos — da religião, em vez de querer o impossível (a espiritualidade sem a religião, ou Jesus sem Deus), devem fazer o exame das coisas que as incomodam. Pode ser que esses termos, dogmas, costumes sejam defeituosos, o que não é de se excluir, pois todas as realidades humanas são imperfeitas e sofrem do desgasto do tempo e do esquecimento. Assim, por exemplo, o termo “pessoa”, na doutrina cristã da Santíssima Trindade, passou a significar, nos tempos modernos, bem outra coisa do que os antigos teólogos cristãos quiseram expressar.
A espiritualidade não pode ser a mera exposição aos ventos sentimentais volúveis segundo o momento, mas deve estar ancorada nesse acontecer inamovível que é a atuação histórica de Jesus |
Os crentes devem ser conduzidos num contínuo processo hermenêutico (isto é, de interpretação) para perceber a relevância da doutrina que sua comunidade lhes transmite; por outro lado, a comunidade deve também fornecer pistas de atualização, maneiras novas de expressar a sua inspiração permanentemente viva. E isso supõe a existência, dentro da própria comunidade, de uma função de diálogo que coloque em confronto as palavras antigas com as mentes e corações de hoje!
Esta função de diálogo tem nomes que, hoje, assustam: dogma, magistério… Concordo que estes termos fiquem restritos ao âmbito de quem lida continuamente com eles, os teólogos. Mas insisto em que a realidade deste diálogo, que retoma continuamente a fé de sempre, seja cultivada e não relegada ao esquecimento. Ora, formar um teólogo exige no mínimo tanto investimento quanto formar um médico ou um engenheiro. Pena que muitos daqueles que receberam a formação teológica, depois, não fazem nada com isso e se ocupam com coisas que todo mundo pode fazer e que poderiam, em grande parte, ser deixadas para os “leigos” (no sentido original desta palavra: os que participam do povo). (Aliás, entre os médicos e engenheiros constata-se o mesmo fenômeno…)
Não existe religiosidade ou espiritualidade sem comunidade de vivência e de transmissão (se se quer evitar o termo, muito carregado, de ”tradição”). E, certamente no cristianismo — que é a tradição da fé num Deus que se torna “carne” no meio da humanidade, em Jesus de Nazaré — a espiritualidade não pode ser a mera exposição a ventos sentimentais volúveis segundo o momento, mas deve estar ancorada nesse acontecer inamovível que é a atuação histórica de Jesus, guardada na memória e na prática dos seus seguidores, em comunidade orgânica.
Johan Konings professor de exegese bíblica na FAJE
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte
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