Dos três princípios deduzidos dos midraxes, propostos por Ketterer e Remaud, o princípio da unidade das escrituras chama a atenção por ter se frutificado em formas diversas de hermenêuticas rabínicas. O midraxe “é o estudo da Bíblia à luz da Bíblia, a partir da convicção rabínica de que a Bíblia é uma unidade, e consequentemente a Bíblia é a melhor interprete da Bíblia” . Destaca-se o horzim, palavra que se traduz por “enfileirar pérolas”. Neste tipo de exegese rabínica, o homiliasta buscava no confronto das grandes unidades literárias do Antigo Testamento – Moisés, pela tora; profetas e salmos, que são os escritos – recriar a experiência da Aliança no Sinai, enquanto experiência referencial para a relação entre o povo e Deus. Relatamos aqui uma homilia, a fim de ilustrar o tema:
Meu pai Abuyah era uma das grandes personagens de Jerusalém. No dia de minha circuncisão, convidou para a festa os notáveis da cidade. Istalou-os em uma casa e reservou uma outra, à parte, para Rabi Eliezer e Rabi Yehoshua. Quando os convidados terminaram de comer e beber eles se puseram a bater palmas e a dançar.
Os mestres judeus relacionavam trechos escriturísticos, alcançando com esta relação, por eles chamadas de “colar” (horzim), a unidade e a plenitude das Escrituras. |
Rabi Eliezer disse ao Rabi Yehoshua: Enquanto eles passam o tempo ao seu modo, ocupemo-nos nós também, à nossa maneira. Puseram-se, então, a estudar as palavras da Torá, passando da Torá aos Profetas e dos Profetas aos Hagiógrafos. Um fogo desceu do céu e os envolveu. Então, meu pai Abuyah lhes disse: Meus mestres, viestes à minha casa para pôr fogo nela? Eles responderam: Deus nos livre disto. Estávamos sentados e fazíamos um “colar” (Horzim) com as palavras da Torá.
Passamos da Torá aos Profetas e dos Profetas aos Hagiógrafos e eis que as palavras se tornaram alegres como eram as que foram dadas no Sinai e o fogo se pôs a iluminá-las como aconteceu no Monte Sinai. Com efeito, quando estas palavras foram, pela primeira vez, entregues no Sinai, foram entregues no fogo, como está dito: “A montanha estava abrasada no foro até o céu”. Então meu pai Abuyah lhes disse: Meus mestres, uma vez que tal é a força da Torá, se este meu filho permanecer vivo, eu o consagrarei ao estudo da Torá.
Os mestres judeus relacionavam trechos escriturísticos, alcançando com esta relação, por eles chamadas de “colar” (horzim), a unidade e a plenitude das Escrituras. Subjaz o princípio de que a Bíblia explica a Bíblia. A imagem do fogo evocava a experiência da Aliança ao ser produzido pelo encontro vivo com a Palavra de Deus. Os mesmos elementos de tal exegese se encontram no relato dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35.44). Tal princípio é reconhecido pela Igreja quando afirma na Constituição Dogmática Dei Verbum, 16:
Foi por isso que Deus, inspirador e autor dos livros dos dois Testamentos, dispôs tão sabiamente as coisas, que o Novo Testamento está latente no Antigo, e o Antigo está patente no Novo. Pois, apesar de Cristo ter alicerçado à nova Aliança no seu sangue (cf. Lc 22,20; 1Cor 11,25), os livros do Antigo Testamento, ao serem integralmente assumidos na pregação evangélica adquirem e manifestam a sua plena significação no Novo Testamento (cf. Mt 5,17; Lc 24,27; Rm 16, 25-26; 2Cor 3, 14-16), que por sua vez iluminam e explicam.
Exercícios de observação:
Nas homilias é possível perceber, pelo recurso aos textos bíblicos, a unidade de toda a Escritura?
1 Citado sem indicação de fonte em: IGLÉSIAS, I. P., Uma lectio divina na Bíblia e com a Bíblia. Juiz de Fora: Edições Subiaco, 2005, p. 31.
Pe. Danilo Lima
Liturgista