No tempo da quaresma somos chamados a dar uma parada no nosso tempo cotidiano para olhar de forma mais profunda a nossa realidade interior e fazer um memorial do nosso batismo. Ao sermos batizados, somos convocados a participar da comunidade de Cristo, lugar onde nos propomos a ouvir a Palavra de Deus e entregar-nos à oração, nos dispondo à celebração do mistério pascal. Iniciando-se na quarta-feira de cinzas, esse tempo quaresmal tem por finalidade nos conduzir à celebração do mistério pascal, mediante à lembrança do batismo e da penitência.
Quando falamos de memorial é bom lembrarmos que esta palavra faz referência a algo que foi profundamente vivido e traz um significado de lembrança-presença para os dias atuais. Ela faz reviver, repercutir no coração, na mente e na lembrança. Nesse sentido, essa palavra é de fundamental importância para a nossa catequese pois ela nos remetem às experiências dos grandes acontecimentos narrados nos textos bíblicos e à instituição da eucaristia .
A Eucaristia expressa em plenitude e totalidade o mistério da vida, morte e ressurreição do Senhor. Realiza a comunhão de vida com Deus e é aperitivo da vida eterna. Para quem se aproxima da Mesa Eucarística não resta dúvida de que o seu alimento é tudo. Os sacramentos de cura, ou seja, os da Penitência e Unção dos Enfermos, com sua originalidade própria, torna presente para o ser humano algum aspecto do mistério pascal de Cristo. No Sacramento da Penitência, encontramos sua força salvífica para a pessoa em sua situação concreta, partindo das experiências de vazio e frustrações no qual se encontram.
O Sacramento da Penitência, hoje chamado de “reconciliação com Deus” leva a pessoa à nova valorização de si mesma e a põe em nova forma de ser e estar diante de Deus, diante de si mesma e diante dos outros. Por isso, o Sacramento da Penitência será fonte de paz interior, cura de feridas e culpabilidades passadas, e ao mesmo tempo, acolhida exultante de um projeto novo de vida. Com o sacramento da penitência somos convidados a não só olhar para traz e se deixar corroer pelo pecado, mas olhar também para o futuro com consciência clara de ter sido reconstruído. Acolhendo o perdão de Deus, renasce à vida original da graça que lhe fora dada no Batismo. É nesse sentido que o memorial nos ajuda: olhamos para traz, fazemos experiência-presença dos fatos da história, momento em que Deus fala à humanidade, nos situamos no presente que é ação de graças e nos projetamos para o futuro, num projeto de vida seguro, porque está sob o sinal do amor de Deus.
Para que possamos viver bem esse tempo de preparação para a solenidade pascal, o caráter original da quaresma foi colocado na penitência de toda a comunidade e dos indivíduos, prolongada por quarenta dias. Assim, vivemos essa experiência como o povo de Deus as viveu, no decorrer da história. Os santos padres da Igreja do século IV, chamados “mistagogos” buscaram essa correspondência fazendo uso do método mistagógico da tipologia bíblica dos quarenta dias. Isto é, o jejum dos quarentas dias de Nosso Senhor Jesus Cristo; os quarenta anos transcorridos pelo povo de Deus no deserto; os quarenta dias em que Moisés esteve no Monte Sinai, os quarenta dias em que Golias, o gigante filisteu, desafiou Israel, até que Davi avançou contra ele, abateu-o e o matou; os quarenta dias durante os quais Elias, fortificado pelo pão cozido sob as cinzas e pela água, chegou ao monte de Deus, o Horeb; os quarenta dias nos quais Jonas pregou a penitência aos habitantes de Nínive.
Podemos dizer que o costume de iniciar o Jejum quaresmal na quarta feira de cinzas é muito antigo e o rito da imposição das cinzas fez com que a quarta feira de cinzas, na prática comum dos fiéis, se difundisse chegando até nós. Esse se tornou para nós um tempo para renovar a conversão levando-nos a uma vida de maior coerência com nosso batismo e nos propiciando um maior vigor com a força do Espírito Santo para bem celebrar o Mistério Pascal.
A quaresma e o Jejum são vistos como um sacramento. A Igreja vive este tempo de quarenta dias como ação estruturada em gestos e palavras, cujo significado é dado pela palavra de Deus e pela presença operante de Cristo. Todo ato sagrado realizado pela comunidade cristã, reunida em assembleia litúrgica, é ‘sacramento’, isto é, sinal expressivo daquela realidade sagrada realizada por Deus e em continuidade com os eventos salvíficos culminados em Cristo.
Vale lembrar aqui, o conceito de mistagogia e tipologia:
Mistagogia é um modo de fazer teologia, que os Padres do final do século IV aplicaram à catequese sobre os sacramentos da iniciação. Como processo de condução ao mistério da fé cristã, ela assinala para uma nova experiência dos sacramentos e aprofundamento das relações com a comunidade dos fiéis. Assim, ao nos conduzir no itinerário da fé, a mistagogia nos propicia uma maturidade espiritual que facilita o acolhimento dos conteúdos específicos da nossa evangelização. O método base desta teologia é a tipologia bíblica.
A Tipologia é uma palavra significativa usada para interpretar a história que se forma a partir da revelação de Deus, seja no Antigo como no Novo Testamento. Trata-se de uma ciência da correspondência entre os dois Testamentos. Ajuda-nos a compreender o Antigo e o Novo testamento como uma só unidade de amor. Com a tipologia os dois Testamentos se tornam um discurso único e um cenário único, com um único protagonista, CRISTO. A particularidade do método tipológico está justamente em mostrar, por meio do paralelismo dos eventos, a unidade do projeto de Deus. A tipologia une passado, presente e futuro e a mistagogia nos conduz para dentro desse mistério. Tanto a tipologia, quanto a mistagogia faz vir à tona a ligação que permeia entre os eventos salvíficos do Antigo Testamento, Novo testamento e da vida da Igreja.
Neuza Silveira de Souza. Coordenadora da Comissão
Arquidiocesana Bíblico-Catequética de Belo Horizonte