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Primeiro, celebrar

Faremos um parêntese sobre o tema da espiritualidade litúrgica a fim de recordarmos alguns conceitos importantes celebrados na Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium. Para nos ajudar na reflexão, repropomos o texto a seguir, escrito por dom Piero Marini*, Mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias de São João Paulo II durante duas décadas. 

Pe. Márcio Pimentel
Liturgista

 

 Liturgia é toda a vida do Filho que se redenção por nós

 

 

Quem lê a Sacrosanctum Concilium com inteligência espiritual é imediatamente conduzido a reconhecer como a realidade da Liturgia não vem expressa por meio de uma definição conceitual e abstrata, mas narrando o que na liturgia se realiza. No Proêmio da Constituição, inclusive, não se indica o que a Liturgia é em si, mas o que se dá mediante a Liturgia  e qual a sua finalidade: “A liturgia, mediante a qual, especialmente no divino sacrifício da Eucaristia, se atua a obra da nossa redenção’ (Missal Romano), contribui em grande grau para que os fiéis exprimam na sua vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja” (SC 2).

 

Compreender a razão pela qual na Sacrosanctum Concilium se afirma antes de tudo que aquilo que se dá mediante a liturgia é obra da nossa redenção, permite-nos demarcar a intenção que impulsiona os padres conciliares a fazer do primeiro capítulo da Constituição uma verdadeira e própria anamnese da obra salvífica de Deus. A origem de tal obra é a vontade mesma de Deus, o qual “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tom 2,4). “Esta obra da redenção humana – continua o texto – que tem sua preparação nos maravilhosos gestos divinos operados no povo do Antigo Testamento se cumpriu em Jesus Cristo, especialmente por meio  do mistério pascal” (SC 5). Essa anamnese chega até nós narrando como a obra da salvação continuada na Igreja se dá por meio da liturgia. Jesus enviou os doze não só para anunciar o Evangelho, “mas também para que atuassem, por meio do Sacrifício e dos Sacramentos, sobre os quais se concentra toda  a vida litúrgica, a obra da salvação que anunciavam” (SC 6). Então, toda a vida litúrgica da Igreja é atuação  da obra da salvação de Deus em Cristo.

Mas por nós, cristãos, a obra da nossa salvação não é um objeto ou muito menos um conceito, mas uma pessoa: Jesus Cristo. Confessar com o Apóstolo Paulo que Jesus Cristo por obra de Deus se fez redenção por nós” (1Cor1,30) significa crer que a nossa salvação não é este ou aquele aspecto singular que nos conduz a Cristo, mas sua existência inteira, e ele na inteireza de sua história como ser humano, assim que “ a sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi feita instrumento da nossa salvação” (SC 5).

Ainda hoje, por certo, a nossa única salvação é a vida de Cristo, e na medida com a qual a liturgia realiza a obra da nossa redenção, ela só pode ser a própria vida do Filho. Por isso “Cristo está sempre presente na sua Igreja e, de modo especial, nas ações litúrgicas” (SC 7). Os seus gestos de salvação são hoje ações sacramentais “assim que, quando alguém batiza é Cristo mesmo que batiza” (SC 7). A sua Palavra de Salvação é hoje a palavra sacramental da Escritura “em que É ele que fala quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura” (SC 7).

Eis, portanto, o primeiro apelo à autêntica inteligência da liturgia à qual a Sacrosanctum Concilium hoje nos recorda. Na fé cristã, a vida em Cristo é a única aceitável pelo Pai, porque “o Pai procura tais adoradores” (Jo 4,23).

A Liturgia é a vida da Igreja chamada a ser memorial do mistério Pascal
 

Antes de unir-se à oração da Igreja,
que é a eloquência da sua fé, deve acreditar nAquele ao
qual a oração se orienta. Antes de
render graças ao Pai por seus dons,
deve “conhecer
tudo que Deus realizou” (1Cor 2,12)

Na fiel continuidade com a grande tradição, a Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia afirma: “Do lado de Cristo adormecido na cruz brota o admirável sacramento de toda a Igreja” (SC 5). A Igreja nasce, portanto, do lado aberto de Cristo, que surge como  resultado do dom que Jesus fez da sua vida “oferecendo-se livremente na sua paixão” (Oração Eucarística II) pela salvação de todos os homens. É, portanto, através da sua paixão, morte e ressurreição, cumprimento de toda a sua vida terrena, que Jesus reúne “os filhos de Deus que estavam dispersos” (Jo 11,52) e gera o novo povo santo: a Igreja. Por isto, o mistério pascal de Cristo é a vida mesma da Igreja, de maneira que, como o mistério pascal de Cristo gerou a Igreja, assim por sua vez, a Igreja gera os homens na vida de Cristo mediante os sacramentos da páscoa de Cristo: o Batismo e a Eucaristia. “Mediante o Batismo os homens são inseridos no mistério pascal de Cristo: com ele morrem, são sepultados e ressuscitam (…) Do mesmo modo, toda vez que estes comem a Ceia do Senhor proclamam sua morte até que Ele venha” (SC 6).
 
A vida da Igreja é memorial do mistério pascal; o que, de fato, a Eucaristia é senão o memorial do mistério pascal de Cristo? Em síntese, meditando a Constituição Litúrgica, parece-me recolher nela um segundo princípio fundamental: a liturgia é a vida da Igreja chamada a ser memorial na história do mistério pascal de Cristo.
 
Fazendo nossa esta intuição da Sacrosanctum Concilium podemos ter acesso com uma maior inteligência aquela passagem onde se afirma que “toda celebração litúrgica, enquanto obra de Cristo Sacerdote e de seu Corpo que é a Igreja, é ação sacra por excelência e nenhuma outra ação da Igreja, da mesma maneira e no mesmo grau, se iguala a eficácia” (SC 7).

Todavia, a Sacrosanctum Concilium nos recorda que “a liturgia não esgota toda a ação da Igreja. Inclusive, antes que os homens possam se aproximar da liturgia, é necessário que sejam chamados à fé” (SC 9).  Antes de ser celebrada, a fé deve ser ouvida e recebida como dom de Deus. Antes de unir-se à oração da Igreja, que é a eloquência da sua fé, deve acreditar nAquele ao qual a oração se orienta. Antes de render graças ao Pai por seus dons, deve “conhecer tudo que Deus realizou” (1Cor 2,12).
 
Gostaria de concluir a reflexão sobre este segundo princípio fundamental da Sacrosanctum Concilium sublinhando a extrema atualidade daquele que tornou-se um verdadeiro e próprio adágio litúrgico: “A Liturgia é a fonte e o cume da vida da Igreja”. O adágio culmen et fons exprime uma precisa imagem de Igreja, contem uma eclesiologia eucarística e litúrgica. O que testemunha a nossa caridade operosa voltada para todos os homens  sem o acolhimento do dom gratuito de Deus e sem a experiência eficaz do amor de Cristo do qual a Eucaristia nos faz participantes? O que dirão as nossas palavras e os nossos ensinamentos ao mundo sem nossa escuta e a nossa conversão à Palavra de Salvação que Deus, ainda hoje, dirige a nós, sua Igreja, quando se reúne em Assembleia? Qual vontade exprime a nossa mensagem de paz e de justiça à humanidade sem a invocação do perdão e da reconciliação com Deus e entre os irmãos que a liturgia nos faz viver, sem o dócil consentimento à ação do Espírito Santo que faz de nós um só corpo no Senhor? A que se reduz a nossa reflexão teológica se não fosse nutrida e plasmada da assiduidade à oração litúrgica da Igreja, que é a norma do nosso crer?
 

 

A Liturgia é a vida do cristão

 

A liturgia é toda a vida do Filho tornada,
com a Páscoa, vida da Igreja e chamada 
a ser, hoje em 
dia, a vida de todo cristão

Se a Liturgia é toda a vida do Filho e nele, a vida da Igreja, seu corpo, realmente não pode ser também fonte inesgotável e ápice da vida de todo cristão. Ocorre, portanto, que o discípulo de Cristo possa beber de tal fonte, acolhendo o convite a ele dirigido: “O homem sedento venha, quem quiser tomar gratuitamente a água da vida” (AP 22,17). Por isso a Sacrosanctum Concilium define a liturgia como “ a primeira e indispensável fonte da qual os fieis podem atingir o verdadeiro espírito cristão” (SC 14). Não há fontes mais vivas, não há outra realidade maior na Igreja onde nós possamos atingir a verdade do nosso crer.

 

A liturgia é a primeira e necessária experiência da fé, porque nela nós encontramos o autêntico sentido de sermos cristãos. É a “fonte de água viva, límpida como cristal” (Ap 22,1), tão límpida que olhando para ela, como um espelho, nós encontramos impressa a imagem da nossa vida cristã e daquilo a que somos chamados a ser e nos tornar como cristãos.

 

É na liturgia, portanto, que nós somos nascidos para a fé e é nela que continuamos a nutrir a vida da nossa fé. Por isto, os Santos Padres e a liturgia mesma descreveram a assembleia litúrgica como o ventre da santa mãe Igreja, no qual o cristão é concebido pelo Espírito Santo, nasce para a vida nova em Cristo, é marcado com o selo do Espírito Santo, é nutrido com o pão da vida e, na comunhão dos irmãos e das irmãs, cresce na fé “até alcançar a medida da plenitude de Cristo” (SC 2).

 

Vir a compreender o sentido da liturgia é condição primeira e essencial da possibilidade de realizar sempre mais o terceiro princípio fundamental da Sacrosacntum Concilium: a liturgia é a vida do cristão.  Se a busca de sentido é a mais profunda necessidade humana, a compreensão do significado da ação litúrgica é hoje mais que essencial. Portanto, a liturgia é para a Igreja a primeira e indispensável fonte do sentido da vida cristã. Assim, através da sua liturgia, a Igreja oferece a todos os homens um sentido da sua existência.

 

Hoje, quarenta e cinco anos depois da promulgação da Sacrosanctum Concilium se pode reafirmar com convicção que “a reforma da liturgia desejada pelo Concílio Vaticano II pode ser considerada atualmente realizada”. É necessário crer e perseverar na compreensão do que a Sacrosanctum Concilium nos oferece: a liturgia é toda a vida do Filho tornada, com a Páscoa, vida da Igreja e chamada a ser a vida de todo cristão. Hoje é necessário crer mais ainda no poder da liturgia. De agora em diante, será necessário  confiar menos em nossos atos e em nossa vontade e mais na potência da ação litúrgica que é sempre poder de Deus na força do Espírito Santo. A nós cabe a tarefa de celebrar a liturgia na inteligência de seu significado, no humilde esplendor dos seus gestos e na simplicidade e nobre beleza de seus antigos ritos.

 

 

 

*Dom Piero Marini
Durante duas décadas, Mestre das Celebrações
Litúrgicas Pontifícias de São João Paulo II 



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