A celebração da Assunção de Nossa Senhora é a versão Ocidental para uma festa muito antiga e de origem oriental, a Dormição de Maria, que já se via celebrada no final do século V. Um tropário do Ofício da votiva à Mãe de Deus, da liturgia oriental, reza: “Virgem Mãe de Deus; guia-me a teu porto, fonte de todo bem, apoio dos fiéis, única digna de todo o canto.” Esta estrofe evoca a dimensão de travessia que caracteriza a vida de todo crente. E Maria, por ter experimentado ‘transitum’ de maneira singular – de Belém ao Calvário – tornou-se exemplo daquilo que se espera da carne de todo ser humano: ser assumida integralmente por Deus.
Se pensarmos bem, cada celebração do Dia do Senhor insere nossa vida nesta dinâmica da travessia. São estações que oferecem repouso, ordem e sentido para a nossa peregrinação neste mundo. Unir-se a outros em assembleia é um gesto revelador desta nossa condição de homens e mulheres que não se bastam a si e em si mesmos. Seres chamados a transcender-se, superar-se, irem além de si para encontrarem Aquele que se fez próximo de todos e decidiu guardar sua presença no mistério do encontro. Deus não quis ser encontrado na alma solitária do devoto, mas no enlace fraterno de uma comunidade fiel: “Estando reunidos…” (cf. Jo 20,19) Quando o culto de uma comunidade nasce desta sede de amadurecimento, de crescimento e dilatação do amor de Deus outrora derramado em nossos corações, temos o contexto necessário para que a graça pascal produza frutos. E este fruto é o corpo novo – a Igreja, no qual refulge a vida filial, a existência de Jesus de Nazaré perdurando na história até o fim dos tempos.
A Oração do Dia formula a súplica que orienta o curso da celebração: “dai-nos viver atentos às coisas do alto”. Nesse sentido, o contexto celebrativo estabelece também o horizonte da fé. Cada liturgia dominical ‘subimos’ um lance na ‘escada de Jacó’. Ascendemos firmando o olhar para o alto, onde se encontra nosso destino e também – em certo sentido – nossa origem. O texto eucológico embora curto é bem rico. Interessante o fato de a petição se inscrever – no âmbito do original latino – na perspectiva da ação mais do que da consciência ou do desejo conforme evoca a tradução portuguesa. ‘Intendere’, no contexto, significa mais do que focar ou aspirar. Trata-se de mover-se em determinada direção, ‘tender a’. O verbo indica o movimento do fiel, que direciona sua existência para ‘cima’, para o ‘alto’, cuja finalidade da súplica expressa pela mesma oração: a fim de participarmos de sua glória.
A Virgem Maria, evocada como apoio dos fiéis, é chamada intercessora da Igreja em seu deslocar-se da existência puramente terrena à vida pascal (chegar à glória da ressurreição). É bem certo dizer que esta Solenidade é o registro antigo da Páscoa de Maria. Recorda o âmbito de sua participação no mistério de seu Filho, e em relação à Igreja, relembra seu caráter emblemático de ‘aurora’ (cf. Prefácio da Assunção). A comunidade dos fiéis, afirma o Prefácio, enquanto move-se neste mundo como peregrina recorda todo o envolvimento da Mãe de Jesus na História da Salvação, de maneira ativa, pondo-se a caminho, no seguimento de seu próprio Filho. Ela moveu sua vida toda em razão do Evangelho. Daí o seu lugar privilegiado na comunhão dos Santos e o sentido de celebrá-la.
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)