Pe Danilo César*
Humildade em tempos de arrogância
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No domingo que passou, tivemos a oportunidade de acolher a Palavra de Cristo que nos convidou à humildade. Outros convites encontram espaço no coração humano: busca de autopromoção, vaidade, competição, autoafirmação, vingança, poder e prestígio. Acolher o ensinamento do Senhor requer, de nossa parte, esforço maior do que a compreensão de um preceito. É preciso ser muito forte para ser humilde como nos ensinou Jesus. Somos chamados a uma nova atitude, na contramão daquilo que muitas vezes se concebe quase que “naturalmente”. A oração após a comunhão pediu: “que este alimento fortifique os nossos corações”… Contudo, a humildade apresentada por Cristo na liturgia, ultrapassa o âmbito do bom comportamento, ou de uma virtude no estilo “manual de boas maneiras”, algo a ser assumido meramente como atitude exterior. Requer uma transformação da pessoa, a partir de Cristo mesmo, que é o autor da nossa fé.
Humildade, humanidade: húmus, terra
Humildade tem a mesma raiz que humanidade: húmus, terra. O conhecimento da palavra nos leva ao reconhecimento de quem somos. O ser humano, por constituição, experimenta a condição frágil da terra e do barro de onde foi tirado. A sabedoria consiste, segundo as palavras do livro do Eclesiástico, (primeira leitura) em exercitar a humildade à medida em que a pessoa realiza os seus trabalhos e se torna grande, importante. Significa, como árvore frondosa, não perder o contato com o solo, com suas raízes, com a consciência de si. Ser altaneiro sem, contudo, perder o chão. Revelar grandeza, no meio das fragilidades e da instabilidade da vida. Reconhecer-se como terra que está sempre aberta e disposta para a semente, a água, ou a falta dela, suportar o peso, as pisadas, a aragem do vento e as lâminas do arado. Ser forte e, na fraqueza, acolher o adubo o esterco, a água, a fermentação.
Em termos bíblicos, reconhecer-se filho de Adão, o homem tirado do barro e insuflado com a brisa divina. A terra humana, embora frágil, foi impregnada com o bafejo de Deus e assim associada, refletiu a imagem do seu Criador. Deus olhou e ainda olha para a humanidade e exclama “Muito bom”. Contudo, a fragilidade deu lugar à arrogância. Esqueceu-se o barro da sua origem criatural, da sua essencial dependência do Criador. Nos termos da primeira leitura, “para o mal do orgulhoso não existe remédio, pois uma planta de pecado está enraizada nele, e ele não compreende”. O orgulhoso, diz o Eclesiástico, ficou altaneiro e ilustre, qualidades que no texto estão contrapostas à humildade. Sugere, o escritor sagrado, que o orgulhoso está distante da sabedoria. Ele não entende e não acessa os mistérios de Deus. Ser humilde significa reconhecer a própria raiz de pecado que se instalou e a inclinação que persiste bem dentro da gente. O humilde sabiamente desconfia de si, pois confia mais em Deus, de quem se reconhece precisado e dependente.
Procurar pelo último lugar
O humilde sabiamente desconfia de si, pois confia mais em Deus, de quem se reconhece precisado e dependente |
O banquete é uma imagem muito forte nos evangelhos. É o lugar do convívio por excelência. Na mesa, os comensais desfrutam do alimento e da companhia dos amigos e do anfitrião. O banquete é imagem da vida e de tudo que ela oferece. Mas como todo símbolo, é aberta e se presta à infinita gama de significados e interpretações. No domingo que passou, essa imagem aglutina ideias importantes: a crítica aos convidados que se apressam a tomar os melhores postos, a recomendação para que os discípulos sejam mais humildes, tomando os últimos lugares e o incentivo para incluir à mesa os pobres e excluídos. O discurso se contrapõe à atitude farisaica de tomar sempre os primeiros lugares e de não convidar os considerados impuros, pobres, aleijados, coxos e cegos. O vértice do texto é, sem dúvida, a máxima: “quem se eleva, será humilhado e quem se humilha será elevado” (v.11). Com isso, Jesus indica para os seus discípulos um lugar e uma direção a tomar: o último posto e a direção dos pobres.
O último lugar é de Cristo
A humildade recomendada por Jesus é vivida do seu nascimento à cruz. É uma constante que pode ser verificada em todo o evangelho e confirmada pelos escritos apostólicos. Também os santos reconheceram Cristo como o humilde por excelência. Charles de Foucault afirmou: “Jesus procurou de tal forma o último lugar que dificilmente alguém lhe poderá subtrair!” Também a liturgia da Igreja faz esse reconhecimento quando propõe, como aclamação ao evangelho, o versículo do evangelho de Mateus 11,29ab: “tomai meu jugo sobre vós e aprendei de mim, que sou manso e humilde coração!”.
É na existência que se finaliza o que a liturgia principia: aprender a calar, aprender a não desprezar, aprender a conviver com as fragilidades e fraquezas todas da vida, nossas e alheias, deixando de lado as disputas |
O jugo de Jesus para os seus discípulos, não é aquele dos fariseus que propunham para os seus um duro esquema de privilégios ou de exclusões. É sim o nivelamento pela experiência dos últimos, pela experiência da cruz, onde se concretiza a humildade de modo maior e mais denso, onde o húmus da existência humana se fez mais frágil, mais entregue e confiante nas mãos do Pai, onde não teve lugar a arrogância do velho Adão, nem o orgulho e a soberba dos fariseus. Na cruz, a humildade fez-se mistério revelado de um Deus que se doou e se aproximou dos últimos, lavando-lhes os pés, compadecendo de sua fome e dor, de suas feridas e enfermidades, de suas exclusões e desacertos. Em Cristo a humildade sintoniza com a cruz, onde o amor.
A humildade é o vínculo com Cristo
A oração do dia suplicou o estreitamento do vínculo que liga a Deus. O vínculo não é outro, senão a humanidade de Jesus no seu adensamento mais humilde. De ora em pois, estar unido a Deus significará não temer o último lugar, onde está Jesus. Escolher ficar com ele e transformamo-nos interiormente para inverter os efeitos da raiz do pecado. Começaremos abrindo o acesso de nosso convívio de nossa sociedade, simbolizado pelo banquete, aos excluídos que já acompanham o Filho de Deus que se fez derradeiro, perfazendo uma rota inversa, na contramão. A liturgia, como mestra da espiritualidade cristã, muito insiste nesse aspecto. O ato penitencial é uma constante recordação dessa condição humilde que devemos assumir. Dobra-se o coração diante de Deus e dos irmãos quando confessamos nossa condição de pecadores e pedimos intercessão daqueles que nos cercam. Mas é na existência que se finaliza o que a liturgia principia: aprender a calar, aprender a não desprezar, aprender a conviver com as fragilidades e fraquezas todas da vida, nossas e alheias, deixando de lado as disputas. Deixar aos outros a tarefa de nos reconhecer e de nos convidar para os melhores lugares e querendo, só de Deus o reconhecimento e a exaltação, para entoar o canto da Virgem que proclama a bondade de Deus que exaltou os humildes.