A Liturgia não somente estabelece a norma do crer (lex orandi lex credendi statuat), mas também a norma do viver (lex vivendi). Somos o que rezamos. O coração pulsante da espiritualidade cristã, portanto, provém dos mistérios do Senhor apresentados à assembleia mediante os ritos e preces, dos quais devem tomar parte consciente, pia, ativa e frutuosamente.
Se alguém ainda pensa na liturgia como uma realidade apenas exterior – culto público tributado a Deus (Mediator Dei 22), – corre o risco de deixar escapar a verdade sobre a liturgia cristã, enquanto realidade espiritual, teológica e pastoral. Esta verdade é também sua maior beleza: a Liturgia é opus trinitatis, ou seja, ação de Deus Pai, Filho e Espírito Santo assumindo-nos em seu divino convívio. Infelizmente, quando damos mais valor às rubricas (que recuperaram seu verdadeiro lugar e importância) do que ao conteúdo teológico e espiritual dos ritos confundindo sacralidade com complexidade, podemos transformar a Liturgia no que ela não é: uma ação enigmática, complicada e distante, nos iludindo que isso a tornará mais piedosa e sagrada.
O que importa, segundo tal mentalidade é cumprir o prescrito e, como dizem os espanhóis, Ya está! Deste modo, não importaria a língua em que se celebra – pois não é preciso compreender o que o se diz para se fazer experiência de Deus. Tal postura seria controversa, uma vez que Deus revelou o seu mistério, dignou-se viver a nossa vida, falar a nossa língua, por sua encarnação redentora. Quis-se fazer inteligível, compreensível, pois como bem afirma o apóstolo Paulo: “Agora este mistério foi manifestado (…) foi levado ao conhecimento de todas as nações, para trazê-los à obediência da fé” (Rm 16,26). O que significa que a revelação torna a humanidade capaz de escutar a Palavra de Deus, que na Liturgia se exprime nos ritos e símbolos.
No pontificado do Papa emérito Bento XVI, alguns alardeavam a necessidade de uma reforma da reforma litúrgica. Tal reivindicação conduziu os menos avisados a atribuir à reforma litúrgica do Vaticano II uma inexistente ruptura com a tradição da Igreja, qualificando-a quase como um desvio.
O Concílio Vaticano II com a Sacrosanctum Concilium não quis somente “salvar a liturgia”, no sentido de preservar, substituir ou reformar ritos. Sua perspectiva foi muito mais profunda: o Concílio quis salvar a vida cristã, pois, ontem, como hoje, parafraseando Bento XVI, há que se reconhecer: a crise da Igreja é uma crise eminentemente litúrgica. Não porque a liturgia reformada pelo Concílio Vaticano II seja inapta e desfigure a oração da Igreja. Mas, talvez, porque houve (e ainda haja) pouca docilidade ao Espírito que imbuiu os padres conciliares em seu afã de conceder à Igreja uma fisionomia mais evangélica e capaz de dialogar com o mundo contemporâneo.
O antigo e novo na expressão da fé
Será tão difícil reconhecer que, para tanto, seria necessário rever a maneira como a Igreja estabelecia no mundo sua identidade, por meio da Liturgia, fonte e cume de sua vida (SC 10). Na verdade, não só rever, mas reaver, reconquistar muitos elementos da tradição que, ou se havia perdido ou havia sido ocultado pelos inúmeros acréscimos devocionais aos ritos litúrgicos, no período medieval, tirando da tradição romana pura – nossa tradição – sua nobre simplicidade e dignidade .
Mais que qualquer outra coisa, lembrando Piero Marini, Mestre de Cerimônias do Vaticano por 20 anos, ilustríssimo liturgista: “Para obter uma bela liturgia é necessário respeitar a celebração tal como foi querida pela Igreja. Mas a celebração, ao mesmo tempo, tem que ser vivida e realizada no hoje da comunidade eclesial, ‘aqui e agora.’ (…) Portanto, o antigo e o novo, se são expressões autênticas da fé e da experiência humana não se enfrentam em uma contraposição insolúvel, senão que se sustentam e iluminam mutuamente.”
A reforma da Liturgia é a realização visível, concreta, palpável do que diz Dom Marini. Nos livros litúrgicos, dela derivados, encontramos o antigo e o novo reunidos em favor da fé. Teólogos da Liturgia, muito sérios e competentes, nos fazem pensar: será que é preciso ressuscitar Missais de outrora, tidos como “de uso mais antigo”, quando o Missal oriundo da Reforma do Concílio Vaticano II – na sua terceira versão em quarenta anos, o que indica o permanente cuidado da Igreja para com seus ritos – articula perfeitamente aquilo que a tradição da Igreja nos legou com as demandas próprias de nosso tempo? Não estaríamos desorientando os fieis, dividindo as comunidades, acirrando disputas ideológicas e realizando na vida cristã contemporânea exatamente o inverso do que a Liturgia Cristã se propõe: um lugar de ordenar a vida segundo o Evangelho de Jesus, de acordo com sua Páscoa?
Pe. Márcio Antônio Ferreira Pimentel
Presidente da CAL (Comissão Arquidiocesana de Liturgia)