Normalmente de finados, voltamos o olhar para os entes queridos que se foram. Neles pensamos, por eles rezamos, deles sentimos saudades. Toda presença importante deixa-nos rastros na vida. Aí estão os cemitérios a testemunhar o cultivo da memória dos mortos. Flores, túmulos ornados, celebrações litúrgicas, orações, visitas.
Conjunto a revelar o sentimento religioso diante dos mistérios dos irmãos que partiram. Para onde? A fé e a esperança cristãs ousam apostar na eternidade do amor de Deus. Vivem da certeza de que todo amor quer eternidade, faz eternidade, é eternidade. E lá estão os nossos irmãos que amaram e morreram no amor. Já não pertencem ao puro tempo. Inserem-se para dentro da vida de Deus, sem princípio nem fim. Toda amor.
A comemoração de finados tem outra face. Menos recordada. Serve de gigantesca peneira que, segundo a parábola do Evangelho, joeira a colheita da existência, separando o trigo do amor e amontoando ao lado a palha da futilidade, da vaidade, da pura exterioridade.
Quem sabe que lá, no cemitério, ao lado do túmulo de pessoa querida, façamo-nos a dupla pergunta: que trigo sobrará se a joeira do juízo de Deus sacudir-nos os anos de vida? E quanta palha voará, levada pelo vento da mera frivolidade? Reflexão que nos deixará algo de sólido além da lembrança e saudade dos mortos.
Finados fala, portanto, de morte e de vida, de passageiro e de definitivo, de tempo e de eternidade pelo lado dos que já partiram e para nós que ainda estamos no caminho |
Nesse momento entendemos a riqueza da fé cristã. Para os que acreditam na possibilidade de volta ainda para a terra ou que caminham para o nada, a morte perde a face de juízo definitivo. Ou já não se rompe de maneira plena com a vida terrestre ou se perde no vazio da não-existência sem nenhuma consequência para o eu presente. O cristão aprendeu verdades fundamentais do mistério da morte e ressurreição de Jesus. A morte exprime a transitoriedade das realidades visíveis, retendo delas unicamente o definitivo e eterno do amor. E isso se chama ressurreição.
Finados fala, portanto, de morte e de vida, de passageiro e de definitivo, de tempo e de eternidade pelo lado dos que já partiram e para nós que ainda estamos no caminho. Enquanto morte, relativiza, transitoriza, desfaz tanta vaidade e exterioridade. A pós-modernidade prima precisamente pela valorização da aparência.
Paulo VI na Encíclica Populorum progressio retoma a reflexão de Gabriel Marcel sobre o ser e o ter, alertando-nos para um ter que afoga e substitui o ser. Com a morte, o ter fica e o ser vai. Se o ter cresceu muito em detrimento do ser, leva-se pouco para a eternidade e priva-se de muito.
Finados acorda-nos para relativizar o ter e o aparecer a fim de pôr toda a força no ser que se pereniza e eternaliza pelo amor |
Hoje, porém, avançamos um passo. Mais que ter, importa aparecer, mesmo não tendo nem sendo. A maquiagem, a tecnologia, a capacidade de simulação dos recursos de propaganda conseguem maravilhas no aparecer, sem precisar do lastro do ter e do ser.
A morte desfaz totalmente o aparecer. Conta-se que Francisco de Borja se encantara com a beleza da Imperatriz Isabel de Portugal. Ao reconhecer-lhe, porém, o cadáver já em decomposição e hediondo, teve tal choque que se converteu. Foi-se a aparência. A beleza está reservada para a ressurreição do corpo, no que ele construiu de bem. Finados acorda-nos para relativizar o ter e o aparecer a fim de pôr toda a força no ser que se pereniza e eternaliza pelo amor.
Pe. João Batista Libanio, SJ
Professor da Faculdade Jesuíta de
Teologia e Filosofia (FAJE)