Nesta semana, convidamos você a vivenciar a liturgia do 12º Domingo do Tempo Comum , celebrado no dia 19 de junho, sobre o Evangelho de São Lucas (Lc 8,18-24), passagem em que Jesus, após fazer sua oração, dirige duas perguntas cruciais a seus discípulos: “Quem diz o povo que eu sou?”; “E vós, quem dizeis que eu sou?”.
Para refletirmos e, assim, colocarmos em prática o que ouvimos e vivemos no dia no Dia do Senhor, contamos com a generosidade e o conhecimento do padre Danilo César dos Santos Lima. Pároco da Paróquia Santana, padre Danilo é especialista respeitado na Igreja quando o tema é Liturgia.
Abraçar a cruz é reconhecer a própria finitude e imperfeições, fraquezas e limites, dando a Deus espaço para nos transformar e dar acabamento à sua obra que somos. O binômio perder/salvar a vida encontra aí mesmo o seu sentido. Salvar a vida no sentido de conservá-la, poupá-la egoisticamente, é perdê-la |
Padre Danilo César Santos Lima*
O nono capítulo de Lucas tem importância decisiva para os discípulos e para Jesus: a clareza de sua identidade messiânica e filial o conduzem para Jerusalém, palco dos eventos da sua paixão e morte na cruz, mas também da sua ressurreição. No domingo que passou, o trecho que ouvimos narrou Jesus fazendo com os seus discípulos algo semelhante a uma pesquisa de opinião pública: “Quem diz o povo que eu sou?” (v.18). A resposta confirma o traço profético de sua identidade. As opiniões oscilam em apontar Jesus como sendo João Batista, Elias ou algum dos profetas ressuscitado. O evangelista faz eco aos episódios anteriores, quando por um lado o povo proclamou depois da ressurreição do filho da viúva de Naim: “Um grande profeta apareceu entre nós” (Lc 7,16), ou mesmo quando essa profecia foi questionada, por ocasião da refeição na casa de Simão, o fariseu: “Se esse homem fosse um profeta…” (Lc 7,39).
A identidade profética de Jesus provoca reações adversas. Acostumados com a pregação radicalista de João Batista, que proclamava o machado já pronto para o corte da árvore que não produzisse fruto, ou o fogo pronto para consumir a palha separada do trigo (Lc 3,9.17), estranham que o profeta de Nazaré se apresente com uma profecia mais branda. Jesus é o profeta consolador (cf. Lc 4,16-21). Ele é aquele que devolve a vida ao filho da viúva, restaura a dignidade da pecadora e acolhe mulheres como discípulas. Acalma a tempestade e depois alimenta a multidão faminta; ressuscita a filha do chefe da sinagoga (cf. Lc 8). Até João Batista estava confuso a respeito de sua identidade e manda seus discípulos perguntar: “És tu aquele que deveria vir, ou temos de esperar outro?” (Lc 7,19). Herodes, igualmente, fica curioso a respeito de Jesus, pois seus informantes também o confundem com João que já havia sido degolado, ou com Elias ou algum dos antigos profetas (cf. Lc 9,7-9).
A todos vale a resposta dada aos discípulos de João: “Feliz quem não se escandaliza por causa de mim” (Lc 7,23). Ao que parece, a plateia de Jesus começou a diminuir. Seu perfil não agradou muito ao clima radicalista da costumeira profecia. Mas não era hora de recuar, outrossim, de demonstrar a que veio. Jesus então, muda o foco de sua pergunta. Dirige-se agora aos discípulos: “E para vocês, quem sou eu?” (v.20). É importante salientar que não se trata de uma preocupação narcísica de Jesus, e que a pergunta pela opinião pública está mais à serviço da opinião e resposta dos discípulos. A resposta de Pedro é categórica: “Tu és o Cristo de Deus”.
A esperança messiânica
A cruz …. de modo algum significa resignar-se, ou passivamente acolher a dor e o sofrimento como fatalidade ou destino imutável. Ela deve sim ser acolhida como desafio e caminho de crescimento no amor e na fidelidade ao evangelho |
O povo de Israel, desde a época de Davi, talvez um pouco antes, parece ter visto germinar na sua consciência religiosa, a ideia de um messias. A isso a teologia bíblica dá o nome de “esperança messiânica”, isto é, a expectativa de que Deus enviaria, por meio de algum escolhido, a salvação, a paz e a justiça ao povo eleito e a todas as nações. O messianismo, desde muito cedo, conheceu também formas diferenciadas de interpretação, admitindo até em se falar de “era messiânica” sem messias, colocando em Deus o foco e a primazia salvífica. Alguns escritos judaicos dizem até que cada época histórica teria seu messias. Outras facetas do messias traziam à tona ideias de um messianismo sacerdotal ou profético. Prevaleceu, contudo, a ideia de Messias rei. No tempo de Jesus essa ideia de messianismo, se harmonizava com a situação de opressão do povo, tornando-se uma expectativa muito aguda e viva.
O termo messias é adaptação do hebraico maschiah, que por sua vez foi traduzido por Christos, em grego. Daí a resposta de Pedro a Jesus, em um evangelho escrito para cristãos oriundos do paganismo, e de língua grega. Seja como for, messias ou cristo significam igualmente “ungido”. A unção – ato de derramar óleo sobre a cabeça – simbolizava que Deus fazia uma escolha, ou eleição para um cargo ou missão. Os reis eram ungidos (messias) no dia da sua “coroação”. O evangelho de Lucas fala da unção espiritual de Jesus, (4,18ss). Lendo a profecia de Isaías 61, na sinagoga de Nazaré, Jesus se autoproclama ungido não por óleo derramado sobre a cabeça, mas pelo próprio Espírito de Deus, para a missão de ir aos pobres para promover a sua libertação. De fato, a redação do evangelho e da atividade de Jesus vão se apoiar sobre esse texto, como um eixo programático da sua missão.
Contudo, no evangelho do domingo, ouvimos Jesus proibir severamente aos discípulos de divulgar que ele é o Cristo. Por quê? A proibição é compreensível: como a esperança messiânica comportava muitas ambiguidades, como, por exemplo, a ideia de um messias nacionalista que se imporia pela força, Jesus não queria ser identificado com nenhuma delas. É o chamado “segredo messiânico”, presente nos evangelhos. Quando é para falar de sua identidade messiânica, Jesus mantém segredo com os seus discípulos. Mas quando é para falar do significado particular do seu messianismo, que tem sua maior expressão na sua entrega voluntária na cruz, Jesus fala abertamente, não só aos discípulos, mas a todos (cf. Lc 9,23-24).
Messianismo e profecia de Jesus
A identidade de Jesus é muito importante para os discípulos, pois eles estão seguindo o seu caminho e precisam conhecer o Mestre, a quem seguem. Contudo, os discípulos são pessoas como nós, dotadas de fragilidades e limites. À medida que a identidade de Jesus se revela, eles vão também se mostrando. Pedro negou ter estado com Jesus (cf. Lc 22,54-62); Judas o traiu (cf. Lc 22,47-48); a mãe de dois discípulos, com expectativas nacionalistas em torno do messianismo de Jesus, pede a ele lugar de honra para seus filhos (cf. Mt 20,20-28); os discípulos de Emaús demonstram sua desilusão para com o profeta Jesus que fora crucificado (cf. Lc 24,19-21). Mas temos que compreendê-los. A mentalidade dominante a respeito da identidade do messias, entrava em rota de colisão com a identidade do Messias Jesus.
Seu messianismo só poderia ser compreendido a partir do messianismo profético do Servo do Senhor (cf. Is 52,13-53,12). A leitura, proclamada na sexta feira da paixão e morte do Senhor, nos faz entender qual o tipo do seu messianismo: o messias servo, que assumiu os pecados da multidão, doando a sua vida no lugar de muitos, a fim de salvar. O Messias Jesus é o messias da cruz, onde a sua entrega realizaria o que anunciara o profeta Zacarias na primeira leitura: “Naquele dia, haverá uma fonte acessível à casa de Davi e aos habitantes de Jerusalém, para ablução e purificação”. Arrependendo-se e chorando a morte daquele que feriram (cf. Zc 12,10). O Cristo de Deus, confessado por Pedro, faz questão de anunciar sua paixão morte: “O Filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia”. Seu messianismo e sua profecia, entram na via da história pela contramão!
Seguir o Cristo – só levando a cruz!
Jerusalém para nós significará qualquer lugar onde a cruz penaliza e fere a vida, do inocente ao culpado, do justo ao injusto, do fraco ao forte, do santo ao pecador |
Conhecer Jesus e dar-se conta da sua identidade tem um estreito vínculo com o seu seguimento. Jesus emite aos discípulos o seu convite: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem quiser perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará”. Tomar a cruz de cada dia significará entrar no dinamismo do Ungido de Deus e não permanecer inerte frente à vida e aos acontecimentos do mundo. Jesus nos mobiliza na direção do reino que se concretiza na entrega pessoal de si pelos outros, na superação da morte e do pecado que ferem a humanidade.
A cruz simboliza toda a nossa condição humana em processo, em acabamento, com seus limites e falhas, com seus sofrimentos e dificuldades, com seus desafios e angústias. De modo algum significa resignar-se, ou passivamente acolher a dor e o sofrimento como fatalidade ou destino imutável. Ela deve sim ser acolhida como desafio e como caminho de crescimento no amor e na fidelidade ao evangelho. O sofrimento pode ser um meio que nos ajuda a fazer desabrochar a nossa condição verdadeiramente humana e filial, no lugar de ser um pretexto para a autopiedade e o conformismo.
Abraçar a cruz significa tomar posse da vida, contando com a graça d’Aquele que assumiu voluntariamente a cruz e que pela sua ressurreição superou o pecado e a morte. Abraçar a cruz é reconhecer a própria finitude e imperfeições, fraquezas e limites, dando a Deus espaço para nos transformar e dar acabamento à sua obra que somos. O binômio perder/salvar a vida encontra aí mesmo o seu sentido. Salvar a vida no sentido de conservá-la, poupá-la egoisticamente é perdê-la. Mas perdê-la, no sentido de dedicá-la aos outros, consumindo-se em favor dos irmãos, da vida, e de causas que ajudem a humanidade a alcançar a paz e felicidade. Como Jesus, o Cristo, somos ungidos para uma missão. Só isso nos fará encontrar o sentido de viver plenamente.
Jerusalém, meta de Cristo
Um pouco mais adiante, veremos Jesus partir resolutamente para Jerusalém, lugar de desfecho trágico de sua missão. O Filho de Deus o faz de modo vicário, como o servo do Senhor, colocando-se no lugar da humanidade ferida. Em outras palavras, faz pelos outros o caminho que, como Filho eterno do Pai, não precisaria de fazer por si. Seguindo seus passos, ser cristão (outros Cristos, outros Ungidos) comporta abertura para assumir a cruz que não é minha, na solidariedade, no serviço e na fidelidade a Deus.
Jerusalém para nós significará qualquer lugar onde a cruz penaliza e fere a vida, do inocente ao culpado, do justo ao injusto, do fraco ao forte, do santo ao pecador. Significará assumir com Jesus a extrema solidariedade com tudo o que é humano, com a criação, com a vida. Jesus não é o messias esperado pelo povo. A expectativa messiânica dos contemporâneos dele não coincidiu com a identidade profunda do Cristo de Deus, o Messias da cruz. Seu messianismo seria abertura para o outro: ao Pai e aos irmãos. Lembremos que, na ceia, Jesus toma o pão e rasgando-o diz: “Isto é o meu corpo que está prestes a ser entregue por vós”. Jesus não vive para si, mas para os outros. Conhecer a real identidade de Jesus requererá entrar no seu caminho, disposto a caminhar para as “Jerusaléns existênciais”: exercendo a solidariedade para com os tantos crucificados do nosso mundo e da nossa história.
*Padre Danilo César Santos Lima é liturgista e pároco
da Paróquia Santana, na Arquidiocese de BH