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Os frutos da Liturgia Dominical

Jesus se fez ponte – cristãos que se fazem ponte

Pe Danilo César *

 

Em cada pessoa humana  Jesus se identificou ao vir do céu trazendo para
cá o dom da sua divindade.Os evangelhos falam dessa identificação de
Jesus com as pessoas: Jesus se identifica com os pobres, os doentes,
e os marginalizados (cf. Mt 25,34-45); com as crianças (Mt 18,5); com os
seus discípulos e missionários (Mt 10,40), com os discípulos reunidos
em seu nome (Mt 18,20),e nos ministros da Igreja que agem em
seu nome (cf. SC 07)

Tendo já celebrado o Ascensão do Senhor, estamos ainda marcados pelas leituras, cânticos e orações que nos ajudaram na celebração da eucaristia dominical. O mistério, palavra rica de significados, e que aq ui tem para nós o sentido de evento, toca diretamente a nossa fé. Nós o rezamos no creio: “subiu aos céus; está sentado à direita de Deus Pai todo poderoso”, e o cantamos no Glória: “vós que estais à direita do Pai”. A Ascensão diz respeito à totalidade do caminho de Jesus neste mundo rumo ao céu, mas também diz respeito à totalidade do caminho da Igreja e de cada cristão, com sua vida, que fazem o mesmo trajeto. Como viver a semana a partir disso? Como deixar que a Ascensão do Senhor enriqueça a nossa experiência de discípulos, hoje?

As narrativas da Ascensão

Os evangelhos narram de forma breve a Ascensão do Senhor aos céus: Marcos num único versículo diz: “Depois de falar com os discípulos, o Senhor Jesus foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19). Mateus não a menciona e João fala de elevação do Filho de Deus, mas a partir da cruz. É o evangelista Lucas quem valoriza o evento com uma narrativa que não se situa apenas no fim, mas adentra o evangelho. Também em Atos, o mesmo é narrado, com algumas pequenas diferenças.

Lucas começa a falar da Ascensão já a partir do capítulo nono, quando narra a Transfiguração do Senhor: Moisés e Elias conversavam com Jesus a respeito do êxodo1  que Ele deveria realizar em Jerusalém (cf. Lc 9,31). No mesmo relato aparece um elemento similar ao da Ascensão: a nuvem que os envolve na Transfiguração é citada no livro dos Atos dos Apóstolos (1,9), indicando a pertença de Jesus à esfera divina. Um pouco mais adiante, no mesmo capítulo (Lc 9,51), o evangelista diz: “quando se completaram os dias de sua assunção, ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém”. Num e noutro caso, a ascensão se liga ao mistério da morte de Jesus, como sendo a elevação do Filho de Deus na cruz, tema caro ao evangelista João (cf. Jo 12,32). Se tomamos ainda a liturgia com seus textos eucológicos (oracionais), a Ascensão toca inclusive o mistério do Natal. Nas orações das oferendas das missas da noite de Natal e do domingo que passou, fala-se em comunhão de dons entre o céu e a terra.

Jesus e o véu da humanidade

Outro dado bíblico importante é a forma de narrar a Ascensão. Existe um notável paralelo entre a subida de Jesus ao céu, narrado em Lc 24,50-52 e Lv 9,22-24: Aarão abençoa o povo – Jesus abençoa os discípulos; Aarão entra na tenda da reunião – Jesus sobe aos céus; o povo hebreu solta brados de júbilo – os discípulos se alegram com a subida de Jesus; o povo se prostra com a face por terra – os discípulos adoram Jesus. Mas é o contexto sacrifical do texto levítico que encontra no evangelho um paralelo em forma de superação: por sua morte e ressurreição Jesus não entra mais em uma tenda da reunião, nem nos santos dos santos. Jesus entra no próprio céu, onde está Deus. O culto judaico foi superado pela salvação operada por Jesus no mistério da sua Páscoa.

A segunda leitura opcional da missa da Ascensão, tirada da Carta aos Hebreus, diz que ele inaugurou um caminho novo através do véu da sua humanidade (Hb 10,20). A vida histórica de Jesus passa a ser o caminho que nos conduz ao céu, o santuário onde entra Jesus com a nossa humanidade. Trilhar esse caminho resulta em encontrar o paraíso aberto. Ou seja: o céu tem o acesso liberado por Jesus e o caminho não é outro, senão pela sua humanidade. A tarefa será fazer com ele esse êxodo, essa passagem, essa Ascenção. Mas daí nasce a pergunta: onde encontrar hoje a humanidade de Jesus que não está mais visivelmente presente entre nós? A resposta a esta questão nos leva a conclusões importantes.

A humanidade de Jesus, um “elo perdido”?

 

A expressão “elo perdido” designa para a ciência uma falta na cadeia evolutiva do ser humano. Na arqueologia procura-se o ancestral que liga o ser humano ao ancestral comum entre humanos e macacos. Algumas descobertas recentes fizeram aproximações, mas ainda restam dúvidas e tudo permanece em boa discussão… A ausência física de Jesus gera em todas as gerações dos discípulos uma falta, é verdade. Afinal somos seres históricos e fazemos a experiência de viver a partir dos sentidos, a partir da dimensão corpórea. Contudo, a humanidade de Jesus, que não mais vemos, não é um elo perdido. Na verdade, o fato de não mais ver fisicamente a Jesus quer dizer outra coisa. O Atos dos Apóstolos (v. 9 da primeira leitura) diz que Jesus foi encoberto pela nuvem a ponto de não ser mais visto pelos apóstolos. No entanto, a “falta” física de Jesus, paradoxalmente, não gera tristeza neles. O relato diz que os discípulos voltaram para Jerusalém com grande alegria! É que a presença de Jesus passa a ser sentida e vivida de outra maneira, pois os discípulos, com a passagem Dele pelo mundo já são outros e compartilham com Ele uma comunhão que foi estabelecida pela ressurreição. A morte de Jesus foi uma ruptura difícil, mas a sua ressurreição restaurou a certeza de sua presença em seus corações. Uma presença que não pode mais ser ameaçada pela maldade e pelo pecado humanos, que levaram Jesus para a tortura da cruz e a morte. “A morte não tem mais domínio sobre ele”, nos dirá Paulo (Rm 6,9b). Jesus ressuscitado agora, mais do que antes, “pertence” à Deus que o ressuscitou. Essa sua pertença é simbolizada pela nuvem que o encobre (cf. At 1,9). Ressuscitado e com Deus, Jesus não mais estará à mercê da ausência, resultado do aniquilamento que lhe impusemos. Ressuscitado e à direita do Pai Jesus está mais presente do que nunca, porque está vivo no céu onde não reina a morte!
 

Mas isso ainda não responde à questão: onde encontramos hoje a humanidade de Jesus para fazer o caminho até o céu?

 

  • Encontramos a humanidade de Jesus em cada pessoa humana com a qual ele se identificou ao vir do céu, trazendo para cá o dom da sua divindade. Os evangelhos falam dessa identificação de Jesus com as pessoas: Jesus se identifica com os pobres, os doentes, e os marginalizados (cf. Mt 25,34-45); com as crianças (Mt 18,5); com os seus discípulos e missionários (Mt 10,40); com os discípulos reunidos em seu nome (Mt 18,20); e nos ministros da Igreja que servem à liturgia  (cf. SC 07)2 ;

 

  • Encontramos a humanidade de Jesus na liturgia da Igreja, quando nos sinais ele se faz presente: nos sinais do pão e do vinho consagrados (Lc 22,19; 1Cor 11,23-25). Na palavra proclamada, pois quando se lê as Sagradas Escrituras na missa é o próprio Cristo que fala. Quando a Igreja batiza, celebra os sacramentos, ora e salmodia Ele também se faz presente (cf. SC 7). Na liturgia fazemos a experiência antecipada da comunhão com Deus. São Leão Magno dizia na sua homilia sobre a Ascensão: “aquilo que era visível em nosso Redentor, passou para os mistérios”, isto é, as celebrações da Igreja. Na liturgia e em suas celebrações se prolonga a humanidade salvífica de Jesus;

 

  • Encontramos a humanidade nas situações existenciais em que somos chamados a viver o evangelho: Paulo diz que os seus sofrimentos completam o que faltou à cruz de Cristo (cf. Cl 1,24); Cristo vive naqueles que fazem a experiência da fé (cf. (Gl 4,20); na história, onde ele se faz presente conforme a sua promessa (cf. Mt 28,20); na existência marcada pela experiência de comunhão com Deus (cf. Jo 14,18-21).   
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A partir desses textos podemos entender a censura feita pelos anjos aos discípulos (cf. At 1,11), cantada na antífona de entrada da missa: “Homens da Galileia, porque estais admirados, olhando para o céu? Este Jesus há de voltar, do mesmo modo que o vistes subir, aleluia!” Não se trata de olhar para o alto no sentido de esquecer a vida e a história, na qual ainda estamos inseridos e nos esforçando por percorrer o caminho do Mestre. Nesta história em que vivemos somos desafiados a reconhecê-lo bem junto de nós, nos incentivando a superar as dificuldades, nos animando quando nos sentimos fracos, nos fortalecendo quando conseguimos, com a sua graça, realizar a vontade do Pai.

Os frutos da Ascensão do Senhor em nossas vidas

As orações da missa, que aqui chamamos de textos eucológicos, ou textos oracionais, falam várias coisas importantes. É bom perceber que esses textos reúnem a fé da Igreja a respeito do mistério da Ascensão do Senhor. Dessas orações destacamos:

 

  • a Ascensão de Jesus é nossa vitória, pois somos (pelo Batismo e pela Eucaristia) membros de seu corpo (oração do dia);

     

  • a nossa humanidade foi colocada com Jesus à direita de Deus (oração após a comunhão);

  •  na esperança somos chamados a participar da glória de Jesus que subiu ao céu (oração do dia);

  •  o céu e a terra trocam seus dons (oração sobre as oferendas);

     

  • a Ascenção é vitória de Jesus sobre o pecado e a morte, pois ele leva para junto de Deus a nossa humanidade que estava refém do pecado e da maldade (prefácio da Ascensão I);

     

  •   à direita de Deus, Jesus é nosso mediador, Juiz e Senhor  (prefácio da Ascensão I);

      

  •  Ele, nossa Cabeça, não se afasta de nossa humildade, mas nos conduz à glória da imortalidade (prefácio da Ascensão I);

   

  • Subindo ao céu ele nos faz participantes da sua divindade (prefácio da Ascensão II);

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em resumo, segundo crê a Igreja, Jesus é o PONTÍFICE, isto é, aquele que fez ponte entre o céu e a terra. Veio de Deus trazendo para nós a sua divindade e subiu para junto de Deus, levando para o céu a nossa humanidade. Ele é o laço que amarra as “duas pontas” da vida cristã, o céu e a terra, trocando seus dons: divindade e humanidade. Ele é o “elo encontrado” da nossa comunhão com Deus: entra na esfera divina, mas não se afasta de nós, permanecendo na humanidade prolongada dos discípulos, da Igreja, da liturgia e das pessoas. Neste sentido, Jesus é a religião verdadeira, pois ele religa o ser humano a Deus e Deus ao ser humano.

 

_Somos chamados a fazer ponte!

Como membros do Corpo de Cristo, somos nós os “pontífices da vez”. Agora, o momento é nosso, é a nossa vez de trilhar o caminho aberto por ele. Mas para fazer isso contamos com a sua presença e a sua força. Fazer ponte significa não aprofundar os abismos e separações que existem no mundo – e são tantos! Mas somos chamados a promover o diálogo, a compreensão, o respeito e a convivência. Lembremo-nos dos belíssimos exemplos que nos dá o nosso Papa Francisco: recentemente acolheu no Vaticano algumas famílias de mulçumanos. Enquanto a maioria dos países da Europa se recusa a acolher os refugiados, o nosso Papa acolhe famílias de outra religião, no coração do cristianismo! Ele prolonga nesse gesto, a atitude profética de Jesus que acolhia os pobres, os enfermos, excluídos e até pessoas de outras religiões (cf. Mt 15,21-28; Lc 7,1-10).

                      _ Somos chamados a reconhecer na nossa própria vida a presença de Jesus!

A vida cristã não é regida pela maldade e pelo pecado que levaram Jesus para a cruz. Somos vitoriosos na sua Ascensão. Nossa humanidade foi abarcada pelo domínio do divino, simbolizado pela nuvem que encobre a humanidade de Jesus. Assim, não nos entreguemos ao mal, mas à vida nova da ressurreição. Não nos desesperemos nas horas difíceis. Jesus, como nosso intercessor, já guarda consigo um pouquinho de nós e nos ajuda do céu, lá onde a vontade do Pai é feita plenamente, conforme rezamos no Pai-nosso. Buscar as coisas do alto (cf. Col 3,1-3), caminhando ainda neste mundo, significa caminhar com a cabeça erguida, com referência, sabendo do nosso destino final, sem nos deixar desviar ou abater.

                     _Não desprezemos nada que é humano, ainda que contenha falhas!

As coisas humanas estão a caminho e em acabamento. Elas não estão prontas! Estamos todos no mesmo caminho, ora acertando e ora errando. Jesus, o único que se sentou à direita do Pai está ajudando a cada um e a todos a ser ponte, a manifestar hoje a sua presença e a colaborarmos uns com os outros. Ele é o único juiz. Não aceitemos ninguém em seu lugar a nos julgar e nem sejamos nós metidos a juízes dos outros. Deixemos que seu juízo de bondade e de misericórdia nos fortaleça e fecunde a nossa vida, para que produzamos frutos. Jesus é o nosso mediador. Não renunciemos à sua ajuda e nem à sua proteção. Deixemos Jesus cuidar de nós e das coisas que não damos conta. Jesus é Senhor. Sujeitemo-nos ao seu domínio que não nos humilha, mas nos ergue e nos promove à vida nova.

 

Continue a meditação: releia durante a semana, até o sábado, os textos bíblicos e oracionais do domingo da Ascensão, disponíveis em subsídios litúrgicos, folhetos e sites diversos. Deixe o Espírito falar, confronte sua vida com a Palavra e ore a partir dela. No percurso, perceba a graça de Deus te acompanhando a partir dessa experiência. Louve e agradeça a Deus. Cuide dos irmãos que estão próximos.

 

 1A palavra êxodo não aparece em muitas traduções, contudo se verifica no original grego e na Nova Vulgata.
 2SC: Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia.

 

*Padre Danilo César Santos Lima é Liturgista e pároco
  da Paróquia Santana, na Arquidiocese de BH



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