Padre Eliseu Donisete de Paiva Gomes[1]
Entre os dias 04 e 29 de outubro, a Igreja Católica realiza em Roma a primeira parte da 16ª Assembleia Geral Ordinária dos Bispos, com a missão de refletir sobre o caminho sinodal da Igreja no terceiro milênio. O papa Francisco propõe, que no itinerário a ser percorrido, “a Igreja poderá aprender quais são os processos que a podem ajudar a viver a comunhão, a realizar a participação e a abrir-se à missão” (Documento Preparatório, n. 1).
O Sínodo dos Bispos foi instituído pelo papa são Paulo VI, em 15 de setembro de 1965, através da Carta Apostolica Sollicitudo. A sua instituição se deu no contexto do Concílio Vaticano II, à luz da Constituição Dogmática Lumen Gentium, como forma de possibilitar um maior envolvimento dos bispos com o romano pontífice nas questões e temas de interesse da Igreja universal. Até o presente momento, contabilizando a 16ª Assembleia Geral Ordinária 2023/2024, a Igreja já realizou 30 sínodos, sendo 15 Assembleias Gerais Ordinárias, 11 Assembleias Especiais e 3 Assembleias Gerais Extraordinárias.
O papa Francisco convocou o Sínodo nos dias 09 e 10 de outubro de 2021, com o tema: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. A metodologia adotada para a realização foi assim definida: a secretaria geral do Sínodo elaborou um Documento Preparatório em setembro de 2021 com um vade-mécum que foi enviado a todas as Igrejas locais do mundo para um processo de escuta a todo o povo de Deus, contemplando também outras realidades eclesiais, constituindo a primeira fase. Cada Igreja local, como também as Igrejas Orientais e as Conferências Episcopais elaboraram uma síntese em abril de 2022, que foi encaminhada para a secretaria geral do Sínodo, culminando no primeiro Instrumentum Laboris (setembro de 2022). A partir desse Instrumentum 1 passou-se à segunda fase, isto é, a continental, que foi marcada pelos encontros pré-sinodais das Reuniões Internacionais das Conferências Episcopais e organismos similares, que receberam o nome de Assembleias Eclesiais Continentais ou Regionais (antes de março de 2023). Destas Assembleias resultaram sete Documentos Finais (março de 2023), que foram enviados para a secretaria do Sínodo, culminando no segundo Instrumentum Laboris (junho de 2023). A Assembleia Sinodal, será dividida em duas sessões, a primeira acontece agora dos dias 04 a 29 de outubro, e a segunda em outubro de 2024, que resultará no Documento Final do Sínodo.
O papa Francisco desde que iniciou o seu pontificado tem utilizado com certa frequência a expressão sonho. Na sua primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium em 2013, ele assim se expressa: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionando mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG, n. 27). O papa, em sua reflexão, vai demonstrando que o sonho tem seu valor teológico e bíblico. Isso pode ser confirmado não apenas na tradição bíblica, mas nos vários testemunhos dos Padres da Igreja quanto também no Magistério de muitos papas, entre eles são João Paulo II e Bento XVI. Os sonhos são instrumentos privilegiados por meio dos quais Deus revela a sua vontade e os seus desígnios.
Em se tratando dos sonhos para uma Igreja sinodal, o papa Francisco evoca pelo menos cinco. O primeiro sonho é de uma Igreja que se encontra. E o primeiro encontro é sempre com o seu fundamento: Jesus Cristo. Não há como manter o vigor missionário e experimentar a alegria do Evangelho sem o permanente contato, pessoal e comunitário, com aquele que dá sentido à nossa vida, e é o núcleo da evangelização. Por isso, tantas vezes Francisco, tem insistido e repetido com todo o Povo de Deus, o que foi dito pelo papa Bento XVI na Encíclica Deus Caritas Est (2005): “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, n. 1). Quem se encontra com Cristo é impelido por um forte amor, uma alegria contagiante, que nos impulsiona a encontrar com os outros. Não apenas com os irmãos e irmãs na mesma fé, mas com cada homem e mulher de boa vontade, que passa pela nossa vida. Como recorda o papa Francisco: “Se alguém acolheu esse amor que lhe devolve o sentido da vida, como pode conter o desejo de comunicá-lo aos outros?” (EG, n. 8).
O segundo sonho é uma Igreja permanentemente missionária. O anúncio do Evangelho de Cristo e da proclamação do Reino é algo que compete a todos os batizados, a todo o Povo de Deus, e não apenas a um grupo seleto de pessoas. Por isso, Francisco pede uma “Igreja em saída”, que ao invés de ficar fechada em si mesma, vá para “todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG, n. 20). Em outras palavras, uma Igreja em direção aos afastados, pobres e excluídos, como fez o próprio Cristo durante todo o seu ministério (Mc 1,38). Nas palavras contundes do papa Francisco, o convite é para uma Igreja que não tem medo de ser “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas” (EG, n. 49). O sonho de uma Igreja missionária passa pela ousadia de romper com toda estrutura caduca, que sufoca e exclui as pessoas, mas que ao mesmo tempo, com criatividade, se abre para a conversão pastoral e às moções daquilo que o Espírito Santo diz à Igreja no tempo presente (Ap 2,7).
O terceiro sonho refere-se a uma Igreja que caminha unida. O desejo de Francisco não é de uma Igreja uniforme, mas, de uma Igreja que valoriza a unidade na sua rica diversidade. Aliás, assim aconteceu na época dos primeiros cristãos, os quais apesar das diferenças e divergências, se mantiveram unidos na oração, no ensinamento dos apóstolos, na fração do pão e na comunhão (At 2,42). Na atualidade há também cristãos que se dizem conservadores e outros que se dizem progressistas no seio da Igreja. Isso, no entanto, não deveria ser motivo para brigas, divisões e ataques. Ao contrário, o fato de ter opiniões diferentes sobre determinados aspectos da fé cristã, mais do que separar, deveria levar sempre a um caminho de diálogo, na busca daquilo que é essencial. É justamente esse caminho da unidade na diversidade, que Francisco tem provocado e desejado: “Não somos todos uniformes na Igreja e esta é a grandeza” (FRANCISCO, 2023, não paginado)[2].
Quarto sonho: uma Igreja que escuta e dialoga com o mundo. Na verdade, este foi um dos grandes apelos do Concílio Vaticano II, a partir da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, que afirmou: “Não há nada que seja autenticamente humano que não faça eco no coração da Igreja” (GS, n. 1). A abertura da Igreja para o mundo, após tempos de forte oposição e rejeição a tudo que era moderno, fez com que ela desse passos para estabelecer um diálogo aberto e universal, não só para com os cristãos, mas com a todo homem e mulher de boa vontade. Nessa esteira o papa Francisco tem desejado que a Igreja se mantenha. Trata-se de uma permanente escuta, abertura, e de um diálogo fraterno e crítico com o mundo. E o grande exemplo disso, são as suas Encíclicas sociais, que tem abordado temas importantes para toda a civilização mundial, e não apenas para a Igreja. Na Laudato Si, 2015, a temática do cuidado com o meio ambiente, a proteção e sobrevivência da vida humana e dos animais, com a proposta de uma ecologia integral, em que tudo está conectado (LS, n. 142). Na Fratelli Tutti, 2020, o tema da fraternidade e amizade social, como caminho para a humanidade se respeitar e aprender a conviver com as diferenças (FT, n. 4). E agora, na sua Exortação Apostólica Laudate Deum, outubro de 2023, uma segunda parte da Encíclica Fratelli Tutti, o grande convite para que toda a humanidade possa fazer um percurso de reconciliação com o mundo que a abriga e enriquecê-lo com o próprio contributo, “pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores” (LD, n. 69). Enfim, exorta o papa Francisco, que o ser humano, fuja da tentação de querer tomar o lugar de Deus no mundo, “o que é um perigo para si mesmo” (LD, n. 73).
Um quinto e último sonho, talvez o mais difícil, o de uma Igreja para todos. Na última Jornada Mundial da Juventude, Lisboa, em agosto de 2023, o papa Francisco repetiu várias vezes com os jovens a frase: “Na Igreja há lugar para todos…cada um na sua língua, repitam comigo: todos, todos, todos…Esta é a Igreja, a mãe de todos” (FRANCISCO, JMJ 2023, no Parque Eduardo VII, Lisboa). Sem dúvida, colocar a Igreja como mãe de todos, tem sido um desafio, e ao mesmo tempo, uma marca profética do papa Francisco ao longo do seu ministério petrino. Aliás, o que ele quer é reforçar o Evangelho do próprio Cristo, que diz: “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). A Igreja deve prestar a toda humanidade um serviço de vida e esperança para cada pessoa que bater à sua porta, seja católico ou não. A exemplo do próprio Cristo, que acolhia a todos (Mt 9,13), sem fazer acepção de pessoas, a Igreja no caminho sinodal, deveria também ser a casa de portas abertas. Para além de julgamentos e moralismos, a Igreja enquanto mãe, deve oferecer, em primeiro lugar, aos filhos e filhas, um abraço e um afago. Gestos que traduzem o agir amoroso e misericordioso que Cristo sempre teve com todos que passaram pela sua vida.
Que a realização do Sínodo sobre a Igreja, seja a oportunidade para que alguns destes sonhos, que não são apenas do papa Francisco, mas de todo o povo de Deus, se concretizem. E que o Espírito Santo, a alma da Igreja e protagonista do processo sinodal, “ilumine cada discernimento, guie as escolhas e decisões, e crie a harmonia e a comunhão na Igreja” (FRANCISCO, 2023, não paginado)[3].
[1] Mestrando em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Belo Horizonte, MG. Bolsista CAPES. Bacharel em Filosofia pela Faculdade Dom Luciano Mendes (FDLM) Mariana, MG. Participa do Grupo de Pesquisa Fé Cristã e Contemporaneidade da FAJE. Email:eliseu.teopraxis@gmail.com
[2] FRANCISCO. “Popecast”, o novo podcast do Papa com os jovens a poucos dias da JMJ. 25 jul. 2023. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-07/papa-francisco-popecast-podcast-jovens-jmj.html. Acesso em: 04 out. 2023.
[3] FRANCISCO. Encontro com os delegados e bispos para o “Caminho sinodal das Igrejas na Itália”. Roma, 25 de maio de 2023. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-05/papa-francisco-bispos-delegados-caminho-sinodal-igreja-italiana.html. Acesso em: 04 out. 2023.