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O tripé da vida religiosa consagrada

Além das exigências relacionadas aos votos de pobreza, castidade e obediência– e sempre a partir da Boa Nova do Evangelho – a Vida Religiosa Consagrada (VRC) assenta-se sobre um tripé indissociável, como um casamento sem qualquer possibilidade de divórcio. O que vale, de resto, para o comportamento religioso e sociopolítico de todo cristão. Podemos ilustrá-lo com três alegorias que remetem à prática de Jesus e, ao mesmo tempo, estimulam seu seguimento, devendo por isso mesmo permear as diversas dimensões da vida consagrada.

 

 
Santa Eucaristia – Monastério Ortodoxo de Valaam Catedral da Transfiguração

 

Montanha

 

Nas páginas bíblicas, montanha aparece como lugar privilegiado de oração, meditação, contemplação. Percorrendo os relatos evangélicos, por várias vezes Jesus se ausenta da multidão e dos discípulos. Onde está o Mestre? Num “lugar à parte”, “no deserto”, “subindo ou descendo de um monte” – expressões que representam momentos de oração assídua, intensa e perseverante junto do Pai (= Abba). De olho no Monte da Oliveiras ou Getsemani, tomemos o termo montanha como metáfora do cultivo progressivo dessa intimidade, a qual chega ao ponto de Jesus afirmar: “Eu e o Pai somos um”. Numa visão panorâmica, em episódios como a sarça ardente, o encontro de Moisés com Deus no monte Sinai e a transfiguração, a montanha simboliza o lugar da epifania, onde Deus vela e revela sua face resplandecente, bem como sua palavra rica, viva e ativa, libertadora e criadora.
 

Mais do que ritos, formalidades ou sacrifícios – tão presentes na religião de seu tempo – Jesus busca o diálogo silencioso com Deus, o que se poderia chamar de “oração mental”

Bastaria um exemplo para analisar mais de perto esse processo místico de profunda espiritualidade. Mais do que ritos, formalidades ou sacrifícios – tão presentes na religião de seu tempo – Jesus busca o diálogo silencioso com Deus, o que se poderia chamar de “oração mental”. Em linguagem socrática, pode ser vista como um espelho onde o autoconhecimento gradativo representa um método decisivo para uma transformação e superação constantes. Mas vamos ao exemplo (Lc 11,1-4): Jesus está em oração “em certo lugar”. Ao terminar, seu semblante provavelmente irradia tanta luminosidade que um dos discípulos não se contém: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou as discípulos dele”. E dessa pergunta herdamos a chamada oração do “Pai-Nosso”, menos como uma fórmula a ser repetida, e mais como uma atitude diante de Deus (primeira parte) e diante dos irmãos (segunda parte). Prece em que a linha vertical e a linha horizontal se enrtrelaçam em mútua interpelação.

Casa/mesa

 

Da mesma forma que é comum encontrar Jesus na montanha (deserto ou lugar à parte) – como símbolo da oração – também o vemos constantemente à mesa, na casa de amigos e conhecidos. Inúmeras vezes come e bebe em companhia de outras pessoas, em geral convidadas de algum anfitrião. Casa e mesa, do ponto de vista humano, são lugares sagrados. A casa cobre, veste e envolve um grupo íntimo, que se quer bem e que se ama. É como se fosse a roupa da família. Sem ela, os membros desta ficaríam expostos aos olhares e à curiosidade alheia, nus em meio à praça pública. Impossibilitados, portanto, de garantir a própria dignidade. Lar, refúgio, proteção, carinho – são todos sinônimos de “sentir-se em casa”.
A mesa, por sua vez, é ponto de encontro. Nela nutrimos o corpo, através do alimento, mas também enriquecemos o espírito, com a presença dos outros. Em termos bem concretos: na mesa comemos e nos comemos uns aos outros.

 

A mesa, por sua vez, é ponto de encontro.
Nela nutrimos o
corpo, através do alimento, mas
também enriquecemos
o espírito, com a presença dos
outros

Alimentamo-nos do pão, por um lado, e, por outro, do olhar, sorriso, palavras, histórias, sonhos, lutas e fracassos dos que se encontram ao nosso redor. A mesa transforma o estranho em irmão, como vemos no episódio dos discípulos de Emaús. Mais ainda, transforma-o em anfitrião, alguém que tem algo a nos oferecer, algo a ser colocado em comum. Disso resulta que a mesa tem a sua liturgia: toalha, flores, luz de vela, pratos e copos enfeitados, prece de gratidão. Mesa que se converte em altar para a comunhão, a Eucaristia! Tudo isso faz parte dos ingredientes da refeição, mas a pessoa do outro constitui o maior tempero do alimento. E quanto mais profunda, sincera e transparente a relação entre os comensais, mais saborosa será a comida. Diferentemente dos animais, os seres humanos tendem a comer juntos, fazendo desse momento um lugar de encontro.

É o que os sociólogos denominam “comensalidade”: partilha do pão e da vida. Nos quatro Evangelhos, Jesus multiplica esses momentos de convivialidade, ao ponto de ser chamado “beberrão e comilão”. E o faz envolvendo os mais necessitados, os pequenos, os últimos, como diria o Papa Francisco. Especialmente os que não têm condições de retribuir o convite, disse o próprio Jesus, o que explica a dupla multiplicação dos pães. Mas a passagem evangélica mais significativa a esse respeito é, sem sombra de dúvida, os capítulos do Quarto Evangelho que formam a sequência da última ceia, do lavapés, do diálogo com os discípulos e da oração sacerdotal do Filho ao Pai (Jo 13 – 17). Na linguagem, nos gestos e nas atitudes do Mestre, esse momento de despedida poderia ser chamado de “testamento espiritual de Jesus”, ou “a expressão viva de seu coração materno” e ainda “um evangelho dentro do Evangelho”.

Caminho

 

Além da prática frequente da oração e da comensalidade – montanha e casa/mesa – Jesus é visto com igual frequência pelos caminhos da Galileia, passando pela Samaria e chegando à Judeia, onde será executado na capital, Jerusalém. Sua missão se desenvolve sobretudo pelos caminhos onde as pessoas se cruzam e recruzam nas suas lutas e embates contidianos. Mais do que no templo e na sinagoga, como que à espera dos “fiéis” a serem evangelizados, Jesus vai ao encontro dos pobres. E mais do que levar-lhes conforto, alegria e esperança, Ele mesmo se faz Boa Notícia. “Verbo que se fez carne”: se faz olhar misericordioso, sorriso que perdoa, palavra que liberta, toque que cura, gesto solidário, presença vivificante.

Duas passagens neotestamentárias corroboram a prática desse galileu como defensor incondicional dos pobres, por um lado, e, por outro, como um “profeta itinerante”. São elas: Lc 4, 16-20 e Mt 9, 35-38. No caso de Lucas, temos o que os estudiosos costumam chamar de programa de Jesus: “Anunciar a Boa Notícia aos pobres, proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” – palavras extraídas do Antigo Testamento, Livro do profeta Isaías (Is 61, 1-2).
 

Ao encontrar “as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”, revela uma compaixão humano/divina que, por mais de uma vez, faz estremecer-lhe as entranhas e chorar um pranto humano

No chamado resumo das atividades de Jesus, Mateus afirma que Ele “percorria todas as aldeias e povoados, ensinando em suas sinagogas e pregando a Boa Notícia do Reino”. Ao encontrar “as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor”, revela uma compaixão humano/divina. Compaixão que, por mais de uma vez, faz estremecer-lhe as entranhas e chorar um pranto humano “demasiado humano”. Compaixão neste caso equivale a um sentimento de quem está disposto não a oferecer coisas, mas de quem se doa a si mesmo, colocando seu tempo e sua vida a serviço de uma causa. No coração desta, como seu motor dinamizador, encontra-se a Boa Nova do Reino.

Montanha, casa/mesa e caminho

 

Os itens acima representam não três movimentos separados e estanques, mas três dimensões vivas e dinâmicas da mesma prática. Montanha, casa/mesa e caminho jamais se dissociam na trajetória de Jesus. Ao contrário, as três se complementam, integram e se interpelam reciprocamemnte, através de vasos comunicantes invisíveis. Isso quer dizer que quanto mais Jesus sobe à montanha para encontrar-se com o Pai (oração), mais se vê atraído à presença dos pobres, órfãos, sós e perdidos pelos caminhos da exclusão social (missão). Entre ambas, trata de formar uma comunidade de apóstolos/discípulos para levar adiante sua obra, partilhando com eles o pão e a vida (casa/mesa). Inversamente, quanto mais Jesus aprofunda seu compromisso com os doentes e indefesos, frágeis e marginalizados no caminho (missão), mais sente a necessidade de voltar à presença do Pai, desenvolvendo uma espiritualidade de intensa intimidade e confiança (oração). Entre ambas, novamente, vê a necessidade de intercambiar a própria experiência com os amigos mais íntimos e companheiros (casa/mesa).

Da mesma forma que a montanha/oração exige e interpela o caminho/missão, este necessita e se nutre daquela. Em meio a essas duas dimensões, a vida comunitária, casa/mesa, se apresenta como uma espécie de posto de gasolina. Ali o carro se abastece não para estacionar, e sim para retormar a estrada. A casa/mesa constitui, ainda, uma retaguarda segura e sólida para quem, a cada momento, tropeça com as adversidades da vida missionária (caminho) e com a noite escura da oração (montanha). Na aridez do processo místico-espiritual, por uma parte, e nos fracassos e desilusões da atividade sociopastoral, por outra, a comunidade religiosa é o lugar onde posso encontrar espaço para a escuta, o diálogo e a compreensão mútua. Se e quando podemos contar com essa retaguarda da casa e da mesa, lançamo-nos no caminho com muito mais coragem e confiança. E com igual confiança nos dispomos a atravessar o deserto do silêncio de Deus. Ao contrário, sem esse ponto de encontro e de recíproco reforço, pouco a pouco as forças nos abandonam e facilmente abandonamos a luta, tanto no processo de formação da espiritualidade quanto no processo de evangelização.

 


Na aridez do processo místico-espiritual, por uma parte, e nos fracassos e desilusões da atividade sociopastoral, por outra, a comunidade religiosa é o lugar onde posso encontrar espaço para a escuta, o diálogo e a compreensão mútua

A falta de um desses pilares pode explicar não poucos abandonos da VRC, marcadamente por parte dos jovens. De fato, a montanha (oração) sem a casa/mesa e o caminho, leva-nos a um deus feito à nossa imagem e semelhança, que deixa de nos interpelar e consequentemente de nos interessar; ou seja, um deus que se faz manipular, justificando todas as nossas atitudes e projetos personalizados. Por sua vez o caminho (ação missionária), sem a montanha e casa/mesa, pode conduzir à manipulação dos pobres em vista de interesses individuais ou de grupo, como o fazem muitos políticos, por exemplo. Enfim, a casa/mesa (vida comunitária), sem a montanha e o caminho, tende a criar um fã-clube centrado em si mesmo, utilizando às vezes o espaço religioso para o lazer puro e simples, sem maiores comprmissos pastorais, sociais ou políticos.

No ministério público de Jesus, as três dimensões se entrelaçam inextrincavelmente. Uma questiona e se deixa questionar pelas demais. Uma requer e reconduz às demais. Aliás, um voo de pásaro sobre as páginas da Bíblia bastará para dar-se conta que a oração verdadeira nos devolve à missão e esta àquela. Figuras como Moisés, Maria e Paulo – além do próprio Jesus – são testemunhas disso. As três dimensões, portanto, fazem parte de uma espécie de círculo virtuoso que cresce em espiral aberta, dinâmica e dialética, ampliando cada vez mais o raio de espiritualidade, vida em comum e ação evangelizadora.

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves
Adital



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