No tempo da Quaresma a Igreja toma para si as vestes penitenciais, e propõe o retorno à radicalidade evangélica que – no turbilhão dos acontecimentos diários – pode se tornar demasiado esmaecida. O Espírito de Cristo que nos habita a partir da consagração batismal necessita, sempre e de novo, ser aspirado, com fins de insuflar em nossas narinas aquela vitalidade perene da Páscoa. De fato, ao retomarmos nossa origem pelas vias simbólico-sacramentais das celebrações quaresmais, assumindo-nos e confessando-nos formados do pó da terra, damos o primeiro e decisivo passo para entrar no repouso de Deus.
A Quaresma se estende diante da comunidade cristã como uma “delicadeza de Deus”, expressão muito apropriada de dom João Resende Costa retomada pelo nosso atual Arcebispo há alguns anos. Sim, delicadeza. Este termo conota vários sentidos e a maioria, senão todos, se aplicam a esta iniciativa divina de permitir-nos um tempo para recuperar nossas origens. Deus é delicado porque sutilmente se insinua, sem nos forçar; delicado também por sua perspicácia: conhece-nos por dentro – um atributo confiado ao Filho Amado – tornando-o capaz de misericórdia e paciência perante nosso ritmo, talvez lento, para a conversão.
As celebrações litúrgicas da Quaresma são oportunidade para buscar Deus que – na profundidade de seu amor – é paciente e afável com os pecadores; com aqueles que romperam o pacto por Ele estabelecido. A Liturgia celebrada se caracteriza primeiramente não como discurso, mas como a fé em ato. O que as Escrituras e a Tradição registram e transmitem sobre a afabilidade de Deus as celebrações realizam. As celebrações penitenciais, em especial o Sacramento da Reconciliação e da Eucaristia, neste tempo, nos abrem as portas de acesso a Deus que é lento na cólera e diligente na compaixão. O Pai de Jesus exerce sobre nós sua paternidade.
A Quaresma deveria – sempre – nos lembrar que Deus não se apressa em emitir condenações. Distinguindo bem, entre pecado e pecador, põe em relevo seu amor pelo gênero humano. Assim, o pecado se torna passível de perdão em vista da reabilitação da pessoa à luz da Páscoa de Cristo.
Assim rezamos na Quarta-feira de Cinzas: “Ó Deus, que vos deixais comover pelos que se humilham e vos reconciliais com os que reparam suas faltas, ouvi como um Pai as nossas súplicas (…).” E também: “Ó Deus, que não quereis a morte do pecador, mas a sua conversão (…) consigamos, pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova, à semelhança do Cristo ressuscitado.”
Este tempo me faz lembrar de uma antiga exegese sobre a expulsão do paraíso, dada pelos rabinos de Israel: eles contavam que Deus, antes de mandar Adão e Eva para fora de seu repouso (o jardim em Éden, o paraíso), insistiu para que ambos assumissem a responsabilidade por sua transgressão. Isso quer dizer que o Senhor pôs de lado o pecado em virtude de seu desejo de continuar na companhia daquelas duas criaturas. As cinco semanas da Quaresma mostram-se como esse tempo de insistência em que Deus, delicadamente, nos solicita perto dele num estado de justiça: assumindo coerente e responsavelmente nossa vida. Jesus – que bebeu na fonte dessa tradição – não podia agir de outro modo. Ele é a encarnação dessa insistente paixão de Deus pela humanidade. Por nós, Ele, Jesus, “enfrenta o diabo” numa atitude exemplar de quem não teme a crise (o deserto!), não foge do risco (a tentação!) porque se lembra sempre da Aliança e sabe que por ela deve viver e morrer, para que nós – com Ele, n’Ele e por Ele – tenhamos uma qualidade de vida que só Deus pode conceder.
A Quaresma é, portanto – e sem sombra de dúvidas – uma delicadeza de Deus.