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O Ciclo do Natal: Tempo da Manifestação do Senhor

E todos nós que, com a face descoberta
refletimos como num espelho a face do Senhor
Somos transfigurados nesta mesma imagem,
Cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor
Que é Espírito!
(2Cor 3,18)
 
 
O Ano Litúrgico é a oportunidade que a Igreja nos oferece para encontrar o Senhor nos mistérios que conformam o acontecimento Pascal. Não é um mero calendário religioso, mas um programa no sentido literal da palavra: um Documento[1] (a Escritura, no caso) diante de nós (do gr. pró-gramma). O Ano Litúrgico dá tangencialidade à Palavra de Deus, fazendo-a ecoar no tempo e no espaço, isto é, encarnar-se. A partir das narrativas bíblicas extraídas da Sagrada Escritura, os fieis podem encontrar e tornar-se oportunidade (tempo) e lugar (espaço) de encontro com o Céu, percurso durante o qual experimenta-se a busca da plenitude do Ser, isto é, de Deus em nós.[2]
 
A celebração da natividade do Senhor aparece documentada historicamente no ambiente católico romano no século IV.[3] O tempo do Advento, que a precede e prepara, teve sua origem, provavelmente, na Espanha e na Gália no final do século IV, com celebrações preparatórias  para a Epifania. Em Roma, no entanto, não se fala de preparação par ao Natal do Senhor antes do século VI. Para o rito romano, o desenvolvimento deste tempo foi mais lento, com uma forma de organização mais ou menos variada. Somente por volta do século XII[4] é que se chega a uma formatação mais precisa, incluindo-se aqui a disposição em quatro semanas.
 
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium  começa falando da vontade salvadora de Deus que o “obriga” a vir ao encontro do ser humano, dando-se a conhecer, sobretudo mediante seu Filho, cuja humanidade se torna instrumento de cura e redenção.[5] É o “Verbo feito carne” quem dá cumprimento à nossa reconciliação com Deus, de modo que o culto divino pleno se estabelece: “Cristo ‘morrendo, destruiu a nossa morte e, ressurgindo, deu-nos a vida’”.[6] Ele vem (Adventus), portanto, para devolver ao gênero humano sua originalidade, uma vez que o mundo (e com ele, o homem e a mulher) tem sua origem na Palavra criadora de Deus. Pode-se dizer que Ele vem fazer sua Páscoa em nós e entre nós. Esta dimensão pascal da existência cristã se expressa com clareza no Prefacio do Advento I: “Revestido de nossa fragilidade, ele veio a primeira vez para realizar seu eterno plano de amor e abrir-nos o caminho da salvação.” [7] Também o Prefácio do Natal afirma: “Gerado antes dos tempos, entrou na história da humanidade para erguer o mundo decaído.”[8] Esta última oração, que provém do Sacramentário Veronense,  insiste na dimensão pascal do Natal do Senhor e seu Advento ontem, hoje e sempre, como oportunidade para que o ser humano seja redimido integralmente, retornando àquela condição com a qual e para a qual foi criado: de ser uma obra maravilhosa de Deus.
 
Observando a estrutura com a qual o Advento foi organizado com a reforma litúrgica, podemos distinguir dois aspectos, comumente chamados de “Advento Escatológico” e “Advento Histórico”.
 
O Advento Escatológico centra sua atenção na vinda gloriosa do Senhor. As antífonas e orações do domingo dirigem nosso olhar para o Senhor-que-vem.  Já o terceiro e quarto domingos se orientam para a recordação do nascimento do Senhor, do acontecimento da encarnação que a Solenidade do Natal encerra.
 
Sobre ambos aspectos, e, como síntese da teologia deste tempo, podemos verificar na hinologia da Liturgia das Horas:
 
“Eterna luz dos homens / Dos astros criador,
Ouvi as nossas preces, / De todos redentor
 
Ao ver compadecido / Do mundo a perdição,
Em vosso amor viestes / Trazer-lhe a salvação.
(…)
 
Um dia voltareis / Juiz e Rei de tudo.
Oh dai-nos hoje a graça, / Na tentação escudo.
 
Hino das I Vésperas até 16 de dezembro.
 
Em meio à treva escura, / Ressoa clara voz.
Os sonhos maus se afastem / Refulja o Cristo em nós.
 
Do Céu desde o Cordeiro / Que traz a salvação.
Choremos e imploremos / Das culpas o perdão.
 
E ao vir julgar o mundo, / No dia do terror, /
Não puna tantas culpas / Mas venha com amor.
 
Hino das Laudes até 16 de dezembro.
 
Recebe, Virgem Maria, / No casto seio materno
Dos céus, o Verbo Divino / Vindo da boca do Eterno.
 
(…)
 
Desceu à terra o Senhor,/ Por Gabriel anunciado;
Promessa antiga aos profetas, / Antes da aurora gerado.
 
Hino das Vésperas depois do dia 16 de dezembro.
 
Os profetas com voz poderosa / Anunciam a vinda do Cristo,
Proclamando a feliz salvação / Que liberta no tempo previsto.
 
Mas a vinda segunda anuncia / Que o Cristo Senhor vai chegar,
Para abrir-nos as portas do Reino / E os eleitos no céu coroar.
 
Hino de Laudes, depois do dia 16 de dezembro.
 
O mais importante, no entanto, é que estes dois focos se entrelaçam durante todo o tempo do Advento e se ligam naquilo que São Bernardo, abade, no século XII chamara de vinda intermediária:
 
Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor, entre a primeira e a última há uma vinda intermediária (…) Esta vinda intermediária é, portanto, como um caminho que conduz da primeira à última. Mas para que ninguém pense que é pura invenção o que dissemos sobre esta vinda intermediária, ouvi o próprio Senhor: Se alguém me ama, guardará minha palavra, e o meu Pai o amará e nós viremos a Ele (cf. Jo 14,23). Lê-se, também noutro lugar: Quem teme a Deus faz o bem (Eclo 15,1) (…) Se guardares a Palavra de Deus, certamente ela te guardará. Virá a i o Filho em companhia do Pai, virá o grande Profeta que renovará Jerusalém e fará novas todas as coisas. Graças a esta vinda, como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (1Cor 15,49).
 

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[1] Em latim, sacrammentum.
[2] Cf. GRÜN, Anselm. REEPEN, Michael. L’anno liturgico come terapia. Milano: Pauline, 2007, pp. 5-25.
[3] Cf. Cronografo de Furio Dionisio Filocalo, cap. 4: “VIII Kal. Ianuarii natus Christus in Behleem Iudeae” (trad. Livre: aos vinte cinco de dezembro Cristo nasceu em Belém da Judeia).
[4] Há, entretanto quem os situe um pouco antes: séculos VIII-IX. Cf. MARTÍN, Júlian Lopez. A Liturgia da Igreja. Teologia, História, Espiritualidade e Pastoral. São Paulo: Paulinas, 2006, p.373.
[5] SC 5.
[6] SC 5.
[7] Missal Romano.
[8] Missal Romano.
[9] Cf. SC 7.

 



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