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O cerco à corrupção

Ponto um: o Brasil sairá mais limpo da crise. Ponto dois: a semente da ética na política, mesmo sob seca intermitente na roça congressual, vicejará. Ponto três: a tão ansiada renovação de quadros começa a se vislumbrar. Ponto quatro: a gestão pública vai encontrar, mais cedo ou mais tarde, o caminho da eficiência. Ponto cinco: o Brasil tem jeito.

Para começo de conversa, é oportuno lembrar que a maior herança maldita a que tanto governantes se referem quando iniciam suas administrações é coisa do passado. A diferença é que, hoje, ela é registrada por câmeras em ambientes federais, estaduais e municipais, exibida em documentários com roteiro e atores. De falas comprometedoras a dólares na cueca, já vimos quase tudo.

O fato é que o DNA das 15 capitanias hereditárias em que o Brasil foi dividido, em 1534, por D. João III, ainda se faz presente, hoje, nas 27 unidades federativas e nos mais de 30 entes que povoam a constelação partidária. Ao serem flagrados no mensalão e no petrolão, enfiando propina nas contas (aqui e no exterior) e articulando negócios de grupos, parceiros de alto coturno continuam a transformar o espaço público em extensões de suas cozinhas.

Interessante é observar que os desmandos na administração pública ocorrem sob estruturas e controles desde os tempos da Colônia. Em 1549, o velho Tomé de Souza, ao instalar o governo geral, deu forte demonstração de sua autoridade. Mandou amarrar um índio acusado de assassinar um colono em Salvador (BA) na boca de um canhão, que o fez em pedaços pelos ares. O ato ficou no espetáculo. A criminalidade, em vez de diminuir, se expandiu.

Ao tomar posse como regente do Império, em 1835, Diogo Feijó prometia um governo infatigável na meta de executar as leis penais. Brandia o refrão: “A impunidade deve cessar”. Pretendia o regente pôr um fim à cultura do perdão que fincou raízes no País desde os tempos (1534/1536) em que o rei de Portugal, d. João III, para incentivar o povoamento do território, estabelecia que nenhuma pessoa poderia “ser presa, acusada, nem proibida, nem forçada, nem executada de maneira alguma”, com exceção de crimes cometidos por heresia, traição, sodomia e moeda falsa.

O esforço de Feijó foi em vão. De lá para cá, o epíteto de “campeão da impunidade” tem sido recorrente para caracterizar os nossos Trópicos.

As tentativas de ajustar os ponteiros da justiça na área criminal se defrontam com obstáculos de difícil travessia, entre os quais se contabilizam mazelas que abrigam o ethos nacional: patriarcalismo, mandonismo, grupismo, familismo.

Dispomos, hoje, de um farto arsenal para combater a corrupção, a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima dos orçamentos dos entes federativos. Já o art. 37 reza sobre a administração pública direta e indireta nas esferas dos Poderes, pregando os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Há o Decreto Lei 201/67, que estabelece a responsabilidade de prefeitos e vereadores. A Lei 8.027/90  expõe normas de conduta de servidores públicos civis.

Há ainda a Lei 8.429/92, que regula as sanções aplicáveis aos agentes públicos em casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo e função na administração pública.

Por último, a Lei 8.730/93, tratando da obrigatoriedade de declaração de bens e ren-das para o exercício do cargo.

Bem, essa é uma parcela do cipoal legal.

Na outra banda, vemos os organismos de controle e investigação. O Ministério Público procura pegar desmandos gerais dos Poderes, fiscalizando o cumprimento das leis e defendendo os interesses da sociedade.

Temos Comissões Parlamentares de Inquérito, sob responsabilidade do Poder Legislativo, instrumento que geralmente acaba contaminado por vieses partidários, servindo de escudo a interesses personalistas. (Veja-se essa CPI da Petrobras, que acabou sem grandes resultados). Já a Polícia Federal, diligente e proativa, mostra disposição para investigar ilícitos, enquanto juízes atentos expendem mandados de busca e apreensão.

Dito isso, vale perguntar: se há leis, entidades respeitáveis para torná-las eficazes e até disposição política para se implantar o império da lei e da responsabilidade, por que a corrupção no País se alastra?

Qual a razão desse fenômeno se abrigar com tanta força nos domínios de um governo de quem se esperava ser o símbolo da ética e da moral? (Não era assim que o PT se apresentava há 30 anos?)

Tentemos responder: a cultura política brasileira acaba driblando a rigidez do estado legal. Há sempre uma saída, uma alternativa, uma composição capaz de abrir os vãos da flexibilidade na interpretação e na aplicação da lei, na punição dos condenados pela justiça e no próprio encaminhamento de processos e recursos. Ademais, só mais recentemente o Judiciário ganhou a admiração social. A justiça ainda é considerada lerda.

Outra resposta: os governos não têm podido conter a avalanche que inunda os currais do presidencialismo de coalizão. Soçobrariam caso continuassem fechados. Veja-se a situação atual. O governo abriu flancos e escancarou alianças. Os sôfregos partidos aliados, aproveitando-se da inapetência política da governante, passaram a reivindicar espaços maiores. O descontrole impera.

A república torna-se coisa repartida entre aliados. A corrupção avança. E, de tão flagrante, deixa-se mostrar. Descobre-se gigantesca rede de corrupção solapando as bases do Estado.

Impressiona a desfaçatez com que dirigentes querem se livrar dos malfeitos.

Para alguns, nunca o Brasil foi tão ético e moral. A dirigente exclama: “em meu governo não há corrupção”. Se ocorriam escândalos, não eram do conhecimento do governo.

Mas, e as licitações realizadas, a teia de negócios, as operações verticais mostrando o fluxo hierárquico da gatunagem, ocorreram ou não na esfera da administração? É crível supor que nada disso era do conhecimento do governo?

 



Gaudêncio Torquato
jornalista, professor titular da USP,
consultor político e de comunicação 



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