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Mistagogia

Um recurso pedagógico, a mistagogia foi desenvolvida pelos Pais da Igreja por volta dos séculos III e IV. Cirilo de Jerusalém, um dos Pais da Igreja, escreveu muitas homilias , com verdadeiros conteúdos mistagógicos. É uma teologia,  um jeito de compreender como Deus se revela. Um modo de se colocar diante da revelação. Ela nos envia a algum lugar, à liturgia, por exemplo:

 

 

 

Uma mistagogia sobre o sacerdócio cristão

 

A sinergia entre ministros e fiéis

 

Orai Irmãos e Irmãs (1º passo)

 

Na apresentação das oferendas, após a preparação dos dons, o ministro que preside propõe aos fiéis: “Orai, irmãos e irmãs, para que o nosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo poderoso”1, ao que responde todo o povo: “Receba o Senhor, por tuas mãos, este sacrifício para a glória do seu nome, para o nosso bem e de toda a santa Igreja”. É verdade que o rito manteve aqui grande influxo medieval, não conseguindo retornar a brevidade, elegância romana do clássico e simples “oremos”2 Uma oração longa se desenvolveu salientando o caráter substitutivo do sacerdócio ministerial que em tempos medievais já alcançara expressão demasiado forte.

 

Contudo, convém situar o rito em seu contexto celebrativo pós-conciliar: não se trata mais de uma celebração onde o fiel era praticamente ignorado como sujeito da ação litúrgica, tratado como mero receptor dos sacramentos, mas uma celebração onde todo o Povo de Deus, ministros e fiéis são protagonistas na celebração. O Concílio e a reforma da liturgia que se efetivou depois trataram de equilibrar os dois pratos da balança: duas expressões de um único sacerdócio de Cristo, mutuamente orientados, os ministros da Igreja pelo sacramento da Ordem e os fiéis pelo sacramento do Batismo3

 

Um sacerdote capaz de interceder (2º Passo)

 

Não se pode negar o caráter sacerdotal da Igreja de Cristo, pois a Cabeça comunica ao seu Corpo seus dons e suas riquezas4. Contudo, o sacerdócio cristão não reproduz o esquema sacerdotal do templo em Jerusalém. Houve uma evolução na linha da ruptura com o sacerdócio do templo, de tal modo que Cristo aprofunda e realiza o que indicaram Moisés e os profetas: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa”5. Neste sentido, Jesus e o cristianismo continuam a tradição da Primeira Aliança: todo o povo de Deus é povo sacerdotal. São Pedro em sua carta afirma: “Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade, a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou das trevas para sua luz maravilhosa”6.

 

Na antiguidade, a Igreja era representada por uma mulher, a Orante. O olhar distraído poderia identificá-la com Maria, a Mãe de Jesus. Mas as suas vestes sacerdotais e sua postura hierática indicam ser uma imagem da Igreja. A representação feminina da Igreja pode indicar também a novidade cristã: o fim do sacerdócio levítico (masculino, hierárquico, restrito à uma casta sacerdotal), que se interpunha entre Deus e o seu povo. Lê-se tal relacionamento entre os sacerdotes antigos e o povo no episódio da oração de Ana (1Sm 1,4-18). A oração da mulher estéril e humilhada não foi compreendida pelo sacerdote Eli que a tomou por embriagada ou vadia, até que Ana se explicasse. Somente após isso a sua oração é aceita e confirmada por Eli. A oração de Ana fora validada por Eli que se interpôs na sua relação com Deus.

 

Já na segunda economia, Ana é a própria Igreja que conta com o sacerdócio não de Eli, mas de Cristo. Não de alguém que desconhece e ignora o sofrimento do povo, mas alguém que pode interceder porque o conhece por dentro: 

 

“Tendo portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus, o Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão de fé. Com efeito, não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas, pois ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado. Aproximemo-nos, então, com segurança do trono da graça para conseguirmos misericórdia e alcançaremos graça, como ajuda oportuna”7

 

Cristo é, portanto, o mediador da segunda Aliança compartilhando com a Igreja o seu sacerdócio, pois compartilhou antes a nossa condição humana. 

 

Sentado à direita do Pai (3º passo) 

 

O que a liturgia exprime ritualmente a respeito da sinergia entre o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial, a Igreja professa em sua fé ao dizer que o Salvador está à direita do Pai. Em termos familiares, diríamos que temos um irmão que levou para junto de Deus a nossa condição humana. Enquanto no céu ele simboliza a nossa humanidade, na terra, sobretudo nas celebrações e no culto existencial, realizamos seu sacerdócio através do Batismo e do sacramento da Ordem. Lá, Ele é nosso eterno intercessor, aqui, como Cabeça do seu Corpo, ele nos permite participar de seu único sacerdócio, trazendo para este mundo as realidades celestes. No exercício do sacerdócio antecipamos aquilo que a salvação em Cristo nos alcançou. Sobre isso, nos ensina o Catecismo da Igreja Católica: 

 

Jesus Cristo, o único Sacerdote da nova e eterna Aliança, não “entrou em um santuário feito por mão de homem… e sim no próprio céu, a fim de comparecer agora diante da face de Deus a nosso favor (Hb 9,24). No céu Cristo exerce em caráter permanente o seu sacerdócio, “por isso é capaz de salvar totalmente aqueles que, por  meio dele, se aproximam de Deus” (Hb 7,25). Como “sumo sacerdote dos bens vindouros” (Hb 9,11), ele é o centro e o ator principal da liturgia que honra o Pai nos Céus”8.

 

Não só pelas mãos do presidente (4º passo)

 

No rito acima descrito, o presidente convoca o povo a orar. A oração faz eco ao Cânon Romano: “eles vos oferecem conosco, este sacrifício de louvor, por si e pelos seus…”, igualmente evocado na SC 48: “aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada”, que afirma o sacerdócio do povo em conjunto com o sacerdócio ministerial. A tradução para a resposta do povo, no Brasil, não distingue, como no latim e na tradução portuguesa, o sacrifício do padre e o do povo, como se, de resto, fossem dois e não um… Salta aos ouvidos o problema pronominal que leva a muitos pensar que a resposta se dirija a Deus. Contudo, é dirigida ao presidente, ao qual o povo “passa a vez” como quem diz “Ore você. Seja a nossa voz”.

 

O presidente toma a frente do povo sacerdotal elevando, em nome de todos, a oração eucarística, ao qual os fiéis se associam pela escuta atenta, pelos gestos e posturas coerentes, pelas aclamações e intervenções, até poder dizer seu solene “Amém”, como assinatura do documento de Aliança. De fato, nesta perspectiva, o Amém final da oração eucarística é o momento de o povo retomar a palavra. Sobre a importância do Amém final, diz Santo Agostinho: “respondendo Amém, subscreveis”9. O que foi dito por aquele a quem foi dado o direito de voz e que preside em nome de todos, por todos é testificado, qual uma assinatura em um documento. Retomam a voz aqueles que, como membros do Corpo de Cristo, participam de seu único sacerdócio. 

 

O  diálogo do esposo e da esposa (5º passo)

 

A nova e eterna Aliança selada no sangue de Cristo nos remete à relação esponsal entre Cristo e a Igreja. Na liturgia esse diálogo é feito imagem, realidade sacramental, no diálogo da presidência (Cristo Cabeça) com a assembleia (Cristo Corpo). Paulo usa essa imagem para dizer a grandeza do mistério de Cristo na e pela relação matrimonial (cf. Ef 5,25-33). É o diálogo que não teme mais ser subtraído no seu direito de voz, pois “quem ama sua mulher ama a si mesmo”. Em linguagem sacramental, o diálogo entre os ministros e fiéis no exercício de seus sacerdócios, na verdade, remetem à uma realidade única, da qual são simultânea e conjuntamente, sinal e antecipação. 

 

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1 O convite do padre tem no atual missal três versões que valeria a pena conferir, cf. anexo. A resposta do povo é sempre a mesma. 

2 Cf. TABORDA, F. O memorial da Páscoa do Senhor. Ensaios litúrgicos-teológicos sobre a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 145-147. Sobre a origem medieval do rito: JUNGMANN, J.A. Missarum Sollemnia: origens, liturgia, história e teologia da Missa Romana. São Paulo: Paulus, 2010, pp. 554-560.

3 Cf. LG 10-11.

4 Cf. IGLH, 

5 Ex 19,6.

6 1Pd 2,9.

7b 4,14-16.

8Catecismo da Igreja Católica, 662.

9Santo Agostinho, Sermo 272.

 

Pe. Danilo dos Santos Lima
Liturgista

 

 



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