Diante das situações em que experimentamos a proximidade da morte, em que os acontecimentos parecem não ter mais volta e solução, em que a morte fatal ou lenta de outrem nos afeta e nos faz morrer junto, recolhamo-nos no colo de Deus, como fazíamos no colo das nossas mães. |
Pe Danilo César*
A liturgia da Igreja reedita a experiência do primeiro anúncio, o querigma, para aprofundar a fé dos cristãos. Nas narrativas que ouvimos a cada domingo, o Espírito Santo dá à comunidade cristã a oportunidade de acolher a pura verdade da fé, aclamada no interior da oração eucarística: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ” De fato, toda celebração cristã volta a esse eixo central da fé, a ser assumido, pouco a pouco e sempre mais intensamente, como eixo central da existência.
Imaginando a cena
Jesus caminha com seus discípulos em direção à cidade de Naim, e uma multidão o acompanha. Ao seu encontro vem outro grupo: uma viúva que vem enterrar o seu filho único. Indo para a cidade, o cortejo da vida, vindo da cidade, o cortejo da morte. Naim, palavra que significa bela, formosa, graciosa, mas também consolação, não tem mais lugar para a viúva que perdeu seu filho. A mãe sai para enterrá-lo e uma multidão a acompanha, pois a morte também lhe atinge: sendo viúva já não tem a proteção do marido e enterra o filho, sua única esperança de vida.
A viúva, um símbolo forte
As viúvas, na sociedade do tempo de Jesus, eram terrivelmente marginalizadas, pois não gozavam do amparo masculino em uma sociedade profundamente patriarcal. Jesus denunciou certa feita que os fariseus devoravam as casas das viúvas (cf. Mc 12,40) e, como na tradição sapiencial e profética (cf. Is 1,17.21; Sl 68,6; Eclo 4,10), é sensível ao seu drama social. A viuvez tem também um significado teológico, pois deriva da relação esponsal: esposo e esposa, símbolo forte da Aliança entre Deus e o seu povo. Os profetas alertam que o povo não é uma viúva sem marido (cf. Jr 51,50). Contudo, o sistema religioso de Israel afasta Deus do povo. A mulher que deposita no cofre do templo de Jerusalém tudo o que possui é símbolo dessa privação do esposo (cf. Mc 12,41-44). Deus, o esposo, foi “sequestrado” por uma religião, que deixou o povo como uma viúva.1
Toda essa reflexão enriquece o encontro de Jesus com a mulher viúva e seu simbolismo: é o encontro de Deus com tudo aquilo que aquela mulher representa. Contudo, a narrativa ainda apresenta um emento agravante: ela enterra seu filho único, sua última esperança de vida e sustento. Não apenas porque é uma mãe que enterra seu filho e por isso morre um pouco. Ela morre socialmente e é uma morte real, lenta e penosa. Na cidade da beleza e da formosura (Naim) não tem mais lugar para ela. O cortejo fúnebre tira-lhe a beleza de viver. Sabe-se que as viúvas se trajavam de modo diferenciado, apresentando sua condição social (Gn 38, 14-19; Jt 10, 3-4 e 16, 8). Valeria para a viúva a oração do salmo 88(87),5: “sou visto como os que baixam à cova, tornei-me uma pessoa sem forças”. A viúva compartilha com o filho o drama da morte. A morte que golpeia fatalmente a vida do filho, agora lhe tira o motivo de viver. É esse o cortejo que vem ao encontro de Jesus.
Compaixão, coisa de mãe
O evangelista narra que Jesus, ao vê-la, sentiu compaixão (v.13). O verbo grego (splangnízomai) que foi traduzido por “sentir compaixão”, comparece em mais duas narrativas lucanas: na parábola do pai misericordioso (15,20) e do bom Samaritano (10,33). Tem a ver com a citação profética de Isaías 49,15: “por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti”. É útil aqui conhecer o sentido literal do verbo grego: comover-se nas entranhas. Essa “comoção uterina” revela traços muito maternais de Deus pelo seu povo. Lucas dá-nos um parâmetro para entender como Deus reage diante do sofrimento: como uma mãe. Sabemos que Jesus, sendo homem, não tinha útero para experimentar dores uterinas. Mas a narrativa lhe dá esse atributo, que supera as diferenças sexuais, explicitando o sentido da compaixão.
O evangelho ressoa esse traço maternal de Jesus quando relata o seu lamento sobre a cidade santa: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os enviados: quantas vezes eu quis reunir teus filhos como a galinha reúne a ninhada sob suas asas; e vós resististes”. Paulo Apóstolo usa a mesma imagem para demonstrar os cuidados apostólicos para com o povo (1Ts 2,7) e São Francisco de Assis bem sabe integrar sua maternidade, quando propõe aos seus frades na regra não bulada IX,11: “E cada um ame e nutra seu irmão, como a mãe ama e nutre seu filho”. O verbo, contudo, não foi mal traduzido. Compadecer-se significa, sofrer junto da mesma coisa que sofre o outro. Assim, Jesus se associa à viúva e não apenas entende, de fora, o que ela sente, mas toma para si a sua dor. Compartilha com ela o sofrimento, revelando-se igualmente como Deus presente e próximo. A aproximação do evangelho faz cair em nossas mentes e corações a construção dogmática de um Deus que, de tão perfeito ficou distante, todo-poderoso, juiz severo e homem bravo. Deus, além de ser Pai, tem também traços maternais!
Compaixão e profecia
Além de anunciar e denunciar, o profeta consola (cf. Is 40,1-2). Jesus, o profeta de Nazaré, se aproxima da mulher e diz “não chores” (v.13). Não são palavras desatentas ou indiferentes à dor daquela mãe que enterrava o seu filho. Ele se aproxima como “o Senhor”, título pascal dado pela leitura que a fé cristã conferiu aos acontecimentos de sua vida terrena. Trata-se d’Aquele que venceu a morte. Com um toque interrompe o cortejo fúnebre – não vai haver enterro! – e com a palavra devolve a vida ao menino – cesse o pranto! O séquito da morte não chega o seu termo, é impedido pelo cortejo da vida. Aqui nota-se a diferença entre o profeta Elias da primeira leitura: ele tem de fazer muito esforço para que a vida volte ao menino. E o faz como alguém que reclama e intercede junto de Deus. Jesus simplesmente devolve a vida ao menino: não há pedido da mãe e não há pedido de nenhum intermediário, como no domingo anterior, do oficial romano. Seu senhorio é absoluto, mas também sua compaixão e sua misericórdia são absolutas.
Lucas narra Jesus, aproximando-o da revelação de Deus a Moisés: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores; pois eu conheço suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo…” (Ex 3,7-8). A palavra de Jesus é palavra forte: “Jovem, eu te ordeno: levanta-te”. A narrativa põe Jesus em paralelo com o Deus que tudo cria pela força da sua palavra (cf. Gn 1,3.6.9). Nesse sentido, Jesus supera o profeta Elias. A viúva de Sarepta, na primeira leitura, reconhece verdadeira a palavra do Senhor na boca do profeta (1Rs 17,24). Mas Jesus é a própria Palavra encarnada. A profecia de Jesus então se mostra acima de qualquer outra: ele consola a mulher, não pedindo a Deus, mas devolvendo, ele mesmo, a vida ao menino. Por isso, com temor aclamam os judeus: “Um grande profeta apareceu entre nós e Deus veio visitar o seu povo” (v.16).
Optar pelo Deus da compaixão
Conhecer Jesus como nos apresenta o evangelho, requer disposição para rever Deus, que trazemos dentro de nossos corações. Jesus tem compaixão, sofre e sente com a mulher a perda do filho, identifica-se com ela pois, como Deus, vê a humanidade caminhar no rumo da morte. O parâmetro maternal que a compaixão de Jesus nos revela pode nos conduzir à uma contemplação diferente de Deus. A liturgia do domingo nos enriquece com a visão de Deus, que precisa ser lembrado na hora da dor e na hora das situações sem solução.
Deus é mãe que se aproxima e se comove, nas entranhas, diante dos nossos sofrimentos. Deus nos olha como Jesus, Jesus nos olha como Deus. Jesus que é Deus nos olha como Senhor soberano, vencedor da morte, mas também como Mãe compassiva que se remexe interiormente para nos consolar e nos devolver a beleza da vida. O parâmetro nos permite uma analogia: diante das situações em que experimentamos a proximidade da morte, em que os acontecimentos parecem não ter mais volta e solução, em que a morte fatal ou lenta de outrem nos afeta e nos faz morrer junto, recolhamo-nos no colo de Deus, como fazíamos no colo das nossas mães. Que lugar para realizar isso senão a oração, a liturgia, a Palavra e a Eucaristia? Peçamos a Deus que interrompa o cortejo de morte em que se meteu nossas vidas, supliquemos a sua misericórdia para cantar como o salmista: “se à tarde vem o pranto visitar-nos, de manhã vem saudar-nos a alegria” (Sl 29,6), ou aclamar com a comunidade pascal na apresentação do pão e do vinho: “Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”
Fazer cortejos de vida para interromper os trajetos de morte que se apresentarem; com um toque, uma palavra, consolar e devolver a vida a quem sofre, a quem peca, a quem perdeu a beleza de viver Misericórdia, compaixão, rimam com ressurreição, com vida nova, para nós e para os outros |
Tiremos dos nossos corações e das nossas práticas, a religião e o falso deus enrijecido pelas duras normas que mais parecem fardos e distanciam as pessoas de Deus, como uma mulher sem marido, uma viúva que perde o filho, sua única esperança. Paulo, em sua carta aos Gálatas, relata como se permitiu encontrar primeiro com esse Jesus que transformou sua vida. Tendo renunciado ao sistema religioso judaico, por chamado de Deus e para a revelação em Jesus, não substitui uma estrutura por outra (critérios humanos). Só muito depois é que vai atrás de Pedro (Cefas) e Tiago. Entrou no cortejo da vida que Jesus encabeça e colocou as demais coisas a serviço do seu trajeto de discípulo e missionário.
Viver a misericórdia como profecia
Tirados do cortejo da morte pelo batismo e pela Eucaristia que celebramos no domingo que passou, somos chamados a assumir as atitudes compassivas e misericordiosas de Jesus. Viver a misericórdia como profecia é inerente à vida cristã. Como batizados(as), recebemos o múnus sacerdotal, profético e régio. Quanta profecia existe em quem sabe se compadecer dos outros! Onde muitos olham e veem só o mal, a profecia da misericórdia compreende, pois faz espaço maternal para reelaborar as situações que se apresentam, muitas vezes sem soluções, como a morte. Por isso a fofoca é um terrível pecado: ela impede o exercício profético da misericórdia, pois cega a compreensão que gera atitudes de compaixão. O cristão faz espaço uterino em seu coração e sente comoção maternal e de entranhas, seja por quem sofre, como por quem peca, como por quem é excluído. Essa profecia pode calar a maldade do olhar envenenado que só vê coisa ruim.
Mas a misericórdia, como profecia que os cristãos, unidos a Jesus pelo batismo exercem, pode devolver a vida: um gesto de caridade, uma visita aos enfermos, um deter-se para escutar, uma renúncia à maledicência… É a lógica do amor que pulsa como mandamento novo e que pode transportar da morte para a vida (1Jo 3,14). Paulo, em sua carta aos Gálatas (segunda leitura), entende a conversão que fez a partir do encontro com o Senhor. De perseguidor, ele se coloca do lado dos cristãos perseguidos. De judeu piedoso e dedicado religioso, rodeado pelas seguranças doutrinais do judaísmo, ele migra para o caminho do Mestre de Nazaré, tornando-se também cristão odiado e desprezado. É a essa conversão à qual somos chamados na Mãe Igreja: de Igreja muito autocentrada e segura de si e das suas doutrinas, para uma Igreja que se põe a gerar espaços uterinos que abriguem os que choram. Fazer cortejos de vida para interromper os trajetos de morte que se apresentarem; com um toque, uma palavra, consolar e devolver a vida a quem sofre, a quem peca, a quem perdeu a beleza de viver. Misericórdia, compaixão, rimam com ressurreição, com vida nova, para nós e para os outros.
*Padre Danilo César Santos Lima é liturgista e pároco
da Paróquia Santana, na Arquidiocese de BH