Muitas tensões aparecem no decorrer da missão de uma Equipe de Pastoral Litúrgica. Dentre elas, chamam a atenção as dificuldades com o tempo e a cultura em que estamos inseridos e que se nos apresentam, desvalorizando aquilo que é humano. Tendem a desconsiderar as expressões constitutivas da liturgia, sua simbologia, sua ritualidade, bem como sua capacidade inerente de relação, de encantamento, de superação… Essa tensão é uma constante na história da celebração do mistério de Cristo na Igreja. Oscila e evolui entre as dificuldades da vida e com justificativas até compreensíveis. Contudo, no tênue limiar da questão proposta, pergunta-se, “por que não?”. A pergunta tem sua legitimidade, contudo institui-se uma tarefa de nos comprometer com sua resposta. Isso pode ser decisivo para compreender a liturgia da Igreja e crucial para uma equipe de pastoral litúrgica, enquanto a orienta para uma direção, por vezes penosa.
“Flores de plástico não morrem”
No mundo moderno em que vivemos, pouco tempo e espaço resta diante do desafiante ritmo que se impôs à vida humana. Em meio ao ritmo frenético em que nossa vida foi inserida – refiro-me às necessidades diversas do dia a dia –, temos de produzir, pagar as contas e impostos, responder às exigências da vida doméstica, familiar e social. Vivemos a maior parte do nosso tempo a caminho do trabalho, no trabalho, ou dormindo, repouso merecido que exige o nosso corpo. Pouco espaço e tempo nos resta para o convívio familiar e fraternal entre amigos, para as artes, para regar a folhagem, cuidar do passarinho e passear com o cão de estimação, ou tomar um café pausado e demorado com pão de queijo em companhia de quem se ama. Tudo o que conseguimos fazer é chegar em casa, tomar aquele banho para tirar a inhaca do dia e nos atirar na cama ou no sofá, diante da TV ligada, pois não queremos nem mesmo pensar de tão exigidos que fomos ao longo da jornada.
Vivemos assim nossos dias e, sem notar, transportamos esse modus vivendi para as outras instâncias da vida: optamos pelo restaurante aos domingos para não nos preocuparmos com fazer almoço e nem termos que lavar a louça ou, quando não há dinheiro, pelo macarrão rapidinho que toma menos tempo, de preferência com o molho de tomate semi pronto. Se tiver lasanha congelada, melhor ainda! A leitura daquele livro fica adiada para outra ocasião que não sabemos mais qual, sendo inconscientemente substituída pela telenovela, ou pelo filme que, de preferência, não seja “cinema cabeça”. A roupa manchada, ou o pequeno “furinho” da camisa são motivos de descarte. Nem pensar em cuidar de tirar aquela mancha, lavando cuidadosamente, à mão! “Cerzir? O que é isso mesmo?”. Nossas mães sabiam, mas hoje é mais fácil comprar outra camisa. O vaso de flor, de preferência plástico, que é para não nos preocupar a mais; não morre, decora a sala e incomoda menos. Não mencionemos os dispositivos móveis, com seus aplicativos e a sua irresistível sedução. Quem pode contra isso? Acha-se um tempo e sacrifique-se o resto…
Vivemos assim e, nossa reflexão não pretende reverter isso. Cada um sabe de si e leva a vida que escolheu. Esperamos, contudo, que seja vivida à luz do evangelho ou, melhor dizendo, que o evangelho chegue também até essas situações. Mas, é com essa mesma mentalidade vamos para nossa Igreja celebrar a liturgia. Lá já se pode ver a entrada desse mundo prático e “clean”: flores de plástico, projeção dos cantos, maquinetas de cartão para a coleta, resinas em tubos plásticos para substituir as velas, celulares para acompanhar as leituras e tablets para a oração eucarística…
Há comunidades que não se dão mais o trabalho de cantar: nos casamentos e até em algumas missas aperta-se o play do reprodutor de CD e na versão mais moderna, acessa-se o pen drive ou o arquivo musical do aparelho reprodutor de som mais recente. Essas são, noutros ambientes, expressões da nossa desumanização e do sequestro que sofremos por parte das nossas atribuições diárias. Sem tempo e lugar para as relações, sem tempo e lugar para a arte e para a beleza, sem tempo e lugar para Deus – a missa não pode passar daquele prazo preestabelecido – resta dizer: sem tempo e lugar para a nossa humanidade! Na possibilidade de conversar sobre o assunto, de tão mergulhados que estamos em tal mentalidade, surgem as questões: “não pode”, “não é litúrgico”, “mas por que não”?
Um estudo de caso: as toalhas do lava pés
O estudo de caso não pretende resolver o problema em si, mas construir um parâmetro que nos leve à indagação da questão e à construção de um caminho razoável para possível superação, não do caso, mas de uma mentalidade que se acerca da liturgia, ou que nela produz o caso. Em determinada comunidade, diante da proposta do uso de toalhas descartáveis no rito do lava-pés, apareceu igualmente a dúvida pelo sentido do rito e da interferência de uma tal opção na assimilação do sentido do rito. O que pode evocar uma simples toalha, descartável ou não? Os motivos alegados pelos membros proponentes eram sobretudo higiene e praticidade. Em si mesmo, os motivos se justificam, contudo, convém relacioná-los com o sentido do rito.
Uma liturgia doméstica
O rito do lava-pés tem origem no costume doméstico e antigo de acolhimento ao forasteiro ou recém-chegado. O gesto exprime cuidado e acolhida para com aqueles que percorriam longas distâncias, a pé, muitas vezes com os pés feridos. Sobre o gesto, comenta o biblista:
A ação de lavar os pés era comum no Antigo Oriente para honrar um hospede que viera por caminhos poeirentos. Realizada antes da refeição, ela costumava ser confiada a um criado; executá-la implicava uma situação de inferioridade. Para exprimir sua submissão a David, que a quer escolher como esposa, Abigail diz aos seus emissários: “Eis tua serva, uma escrava pronta a lavar os pés dos servos de meu senhor”. (Nota 32. 1Sm 25,41. Mais tarde, o gesto acabou por exprimir a reverência por alguém: o discípulo com relação a seu mestre, uma mãe com relação a seu filho rabi. Ele chegou mesmo a tornar-se um dever da parte da mulher para com o marido, dos filhos para com o pai).
Fica clara a origem doméstica, o sentido de acolhimento e a conotação de intimidade e de serviço do rito. Além disso, quem lavava os pés eram as pessoas que se submetiam às outras, os escravos, os serventes, os filhos e as esposas, ou os discípulos. Seja como for, a relação permanecia doméstica, familiar e íntima. Tais elementos são identificáveis no gesto de Jesus que lavou os pés dos seus mais íntimos, os discípulos, que com ele percorreram, em missão, os caminhos da Galileia.
Hospitalidade, um caminho de encontro com Jesus
Num mundo sem hospitalidade é difícil compreender o que vem a ser lavar os pés. Nosso distanciamento do rito se dá em três níveis:
O distanciamento histórico cultural – já não entendemos mais o significado do rito por causa das nossas diferenças culturais. Não andamos descalços e desfrutamos de um assombroso conforto se nos compararmos com o povo e a cultura do tempo de Jesus. Além disso, a vida no deserto e nos países do oriente médio assimilaram uma cultura da hospitalidade em vista das adversidades que o ambiente impunha. Ser hospitaleiro naquele contexto hostil significava não romper o ciclo de proteção à vida.
Segundo nível de distanciamento – este, de aspecto mais sociológico, nos leva a reconhecer que tendemos mais a repelir o outro, não a acolher, sobretudo quando ele nos tira do conforto em que nos instalamos. Reforçam essa atitude repelente o nosso medo da violência e o nosso instinto à autopreservação. Assim, construímos muros intransponíveis, prédios com porteiros, cercas elétricas, cães de guarda e alarmes.
Terceiro nível de distanciamento – nossa prática religiosa tendeu a dissociar o sagrado das coisas humanas e das relações. Muitas pessoas vivem a experiência religiosa, prescindindo da necessidade que a fé cristã nos propõe como irrenunciável: a relação com os irmãos como porção humana mais concreta e próxima. Em sua carta, o apóstolo diz: “Se alguém disser: ‘amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus que não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). O sagrado sofreu uma mutação para uma experiência não mais encarnada, sobretudo na relação com a concretude do outro, mas para uma sacralização não mediada pelo componente humano, também manifestado pelas suas expressões simbólicas e rituais da liturgia. Assim, uma hóstia não pode ser pão, um altar não pode ser mesa, uma música não pode ter um ritmo específico, nem um pé a ser lavado pode ser sujo… (sic!) . Os sinais como ponte para o outro se tornaram herméticos e opacos, reforçando uma relação puramente vertical com Deus.
É preciso, então, retornar à hospitalidade de Jesus. Jesus é aquele sujeito que quer ir para as casas e que tem gosto pela hospitalidade. Vai à casa de Zaqueu, o cobrador de impostos, considerado impuro por lidar com dinheiro estrangeiro (cf. Lc 19,1-10); à casa de seu amigo Lázaro e suas irmãs Marta e Maria, uma delas metida com os afazeres domésticos (cf. Lc 10,38-42); do fariseu que o chama para uma refeição (cf. Lc 14,1); simula que não vai entrar – mas entra! –, na casa de Cléofas e de sua mulher, em Emaús (cf. Lc 24,28-29); chamado de comilão e beberrão por não fazer jejum como o profeta João Batista (cf. Mt 11,18-19); entra na casa até quando não é mais esperado (cf. Jo 20,19). Mas a sua hospitalidade se mostra não somente pelo gosto de estar com seus amigos e anfitriões, mas, sobretudo, pelas suas atitudes: preocupado Ele não deixa partir a multidão faminta sem lhe dar alimento (cf. Mt 14,13-21); ensinando bons modos aos discípulos ele ensina as coisas do reino (cf. Lc 14,7-24); convidado, não deixa a festa de casamento ser interrompida pela falta de vinho (cf. Jo 2,1-12); humildemente, pede água à mulher com quem não falaria um judeu (cf. Jo 4,7-9); retira-se com seus discípulo para repousar (cf. Mc 6,30-31); cura o leproso infringindo as leis de pureza e sem medo de tocá-lo (cf. Mt 8,1-4); dispõe-se a curar o servo de um pagão, o centurião romano (cf. Mt 8,5-8); lava os pés dos discípulos como faziam os escravos (cf. Jo 13,4-5); prepara peixe e pão na brasa para os amigos pescadores (cf. Jo 21,1-10).
Jesus transforma a hospitalidade em atitude de encontro pessoal, de proximidade, de presença e de atenção. Muitas vezes transgredindo, seus gestos alcançam aquelas pessoas e situações em que a segregação apartou da sociedade e da religião. Sua hospitalidade revela uma face atenta e cuidadosa de Deus que se desdobra sobre os sofrimentos e acontecimentos humanos. Ela é encontro entre a humanidade saudável e curativa de Jesus com a humanidade doente e ferida das pessoas. Em Jesus, a salvação se revestiu de hospitalidade.
O que se viu em Jesus, agora se vê na liturgia
A Constituição Sacrosanctum Concilium, em seu artigo 5, retomando o ensinamento dos padres da Igreja, sobretudo de São João Damasceno, ensina que a humanidade de Jesus, unida à pessoa do Verbo é instrumento da salvação:
Deus, que quer salvar e fazer chegar ao conhecimento da verdade todos os homens (1Tm 2,4), “havendo outrora falado muitas vezes e de muitos modos aos pais pelos profetas” (Hb 1,1), quando veio a plenitude dos tempos, enviou seu Filho, Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo para evangelizar os pobres, curar os contritos de coração, “médico carnal e espiritual”, mediador de Deus e dos homens. Sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi o instrumento de nossa salvação.
Desta forma, a liturgia se configura como “lugar” de encontro com a humanidade restauradora de Jesus. Essa humanidade do Senhor que não mais se vê, a não ser pelos sinais deixados da liturgia, nos acessa e nos transforma. Os sinais são seu prolongamento, sua forma de presença e de atuação. Eles precisam, contudo, da transparência que nos remete à pessoa do Cristo: evocam o seu agir, seus cuidados, sua hospitalidade, sua humanidade.
Falar de liturgia humana significa falar da liturgia como continuação dos Evangelhos. A liturgia da Igreja, sempre mais próxima à humaníssima liturgia dos Evangelhos, em sempre maior transparência cristológica. Uma liturgia capaz de ser sacramento da humanidade de Cristo, capaz de acolher e transfigurar toda a humanidade de quem a celebra. Assim, a humanidade da liturgia será, no hoje da Igreja, a expressão mais eloquente do mistério da encarnação do Verbo. A liturgia é humana quando é fiel à humanidade de Jesus Cristo: só assim poderá ser fiel ao homem e à mulher de hoje. E quanto mais ela será evangelicamente humana, tanto mais será autenticamente cristã.
A liturgia, vivida como lugar da hospitalidade de Jesus, onde o encontro das humanidades – a de Cristo com a nossa – não pode ser sequestrado pelo modo de viver imposto pela cultura atual, nem pelas nossas manias ou déficits de formação, sob o risco de comprometer a sua sacramentalidade. Quando os sinais perdem sua conecção com a fonte da liturgia que é o mistério de Cristo, eles se tornam opacos e deixam de funcionar como prolongamento da humanidade dele.
Voltando ao caso e aos casos
Uma toalha para o lava-pés não é só uma toalha. Ela exprime o cuidado, o carinho que entre os irmãos é capaz de ser gesto sacramental de Cristo que amarrou a toalha à cintura. A toalha não pode ser pensada isoladamente. Ela tem de ser incluída no serviço ritual que chamamos de “rito do Lava-pés”. Esse rito inclui os participantes: ministros e fiéis, lavando os pés uns dos outros como o Cristo ordenou. Inclui os sinais: o inclinar-se de quem lava, a adesão de quem é lavado, a bacia, a água, a toalha. Inclui a atitude serviçal de quem lava e a docilidade de quem é lavado. Ela evoca um ambiente fraternal, amável, hospitaleiro. É todo esse conjunto que nos remete à grandeza sacramental da liturgia: prolongamento do gesto do próprio Jesus que, amando até o fim, se fez servo da nossa humanidade. O lavar os pés de Cristo tem sentido completamente diferenciado do que faz uma pedicure em um salão de beleza cujo serviço cairia bem uma toalha descartável.
Mas não nos detenhamos no caso acima. Ele nos indica uma mentalidade que não se pode admitir nas celebrações. A liturgia reclama pela verdade dos nossos sinais: flores e arranjos florais verdadeiros que foram semente e um dia hão de morrer; música cantada que module o ar do Espírito de Deus e não reproduzida por um aparelho; hóstia que se pareça com um alimento – o alimento Cristo, pão da vida eterna; livro que evoque o Cristo Palavra do Pai escrita em nossa vida e em nossos corações; velas que se consomem como o Filho que se doa e se consome até a morte, e óleo que escorra como sinal generoso da nossa eleição batismal (cf. Sl 133,2). Que não sejamos vencidos pelo escrúpulo, pelo legalismo, ou pela excessiva preocupação de higiene. Deixemos desabrochar em nossas celebrações a hospitalidade de Jesus, atitude e lugar de encontro com a sua humanidade que se prolonga na liturgia.
Pe Danilo César
Liturgista