Na sociedade plural, verifica-se crescente valorização da subjetividade. Se por um lado a ação individual encontra abertura e acolhida e, desse modo, legitimidade no conjunto das relações sociais, as ações coletivas são menos visíveis e poucas vezes realizáveis e reconhecidas por maiorias.
A comunidade cristã, sabendo que não é do mundo, mas que vive em inteira relação com ele até que chegue definitivamente à vida de Deus, empenha-se em realizar a missão de Cristo de tornar o Reino presente. Nesse intento, cristãos e cristãs não estão isentos da interação com a sociedade plural. Dela participam e nela se relacionam, sofrendo influências e influenciando-a.
A Liturgia enfrenta o desafio de permanecer em sua gênese de ação comunitária do povo de Deus. |
Neste cenário plural, será comum observar, nas ações litúrgicas, maior acento a práticas individualistas de oração, um forte apelo ao emocional desembocando numa liturgia psicossomática de uma “religião da cura”. A Liturgia perde sua dimensão política (aqui entendida em sentido grego, daquilo que é bem comum), distanciando-se assim de ser genuína expressão de fé da Igreja toda.
A Constituição Conciliar Sacrossanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia (SC) insiste na afirmação da ação litúrgica como ação da Igreja, Povo de Deus, em contraposição a ações privadas: “As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é ‘sacramento de unidade’, isto é, povo santo reunido e ordenado sob a direção dos bispos. Por isso, tais ações pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no, atingindo, porém, cada um dos membros de modo diversificado, segundo a variedade de estados, funções e participação atual” (SC 26). Sendo assim, o sujeito da liturgia é a Igreja contemplada no sinal sensível da assembleia litúrgica.
Convocada por Deus, a assembleia é reunida no amor de Cristo “para ser um só povo em seu amor”. |
Não é da somatória de indivíduos que se obtém a realidade de uma assembleia litúrgica. Ela é muito mais que 1+1=2. Não se trata de um emaranhado ou aglomerado de pessoas imbuídas de objetivos comuns ou dos mesmos ideais, como é o caso de uma torcida de um time de futebol. A lógica desta assembleia litúrgica é outra. Ela é a comunidade de batizados, o corpo cuja cabeça é o Cristo. Convocada por Deus é reunida no amor de Cristo, para ser um só povo em seu amor, um só corpo e um só Espírito. A assembleia litúrgica é sinal da Igreja una e ministerial na fecunda diversidade das participações dos jovens, idosos, adultos e crianças.
Diante do contexto plural, a Liturgia enfrenta o desafio de permanecer em sua gênese de ação comunitária do povo de Deus. Se de um lado busca superar a visão da Carta Encíclica Mediator Dei sobre a Sagrada Liturgia, de Pio XII, na qual a ação litúrgica é obra do sacerdote em nome da Igreja (“o padre é o celebrante”), de outro lado, a fim de superar os individualismos crescentes, tenta firmar-se como ação da Igreja, na qual, por Cristo e em Cristo eleva a Deus a ação de graças.
A liturgia celebrada pela comunidade cristã será tanto mais genuína à Tradição quanto mais for expressão de verdadeiro laço comunitário, celebrada na “pessoa da Igreja” (in persona ecclesiae). Não expressão de subjetivismos e individualismos. Desse modo, grande é a responsabilidade do agente litúrgico. Cada qual, no desempenho de suas funções, contribui para que a liturgia seja celebração da fé de toda a Igreja e da Igreja toda.
Tânia da Silva Mayer
Mestranda em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filofia e Teologia