Você está em:

Liberdade criativa – artigo de dom Vicente Ferreira, Bispo auxiliar da Arquidiocese de BH

Toda cultura tem alegrias, conquistas, dores e contradições. Ser humano é bem assim, mistura de graça e pecado. Ninguém, nenhum grupo ou pessoa, pode reivindicar para si o posto de perfeição. Inserida em ambiguidades, é na travessia da vida que gente faz seu caminho de liberdade amorosa ou perdição egoísta. Somente os arrogantes se julgam donos absolutos da verdade, modelos ideais, colonizadores dos outros. E isso é muito perigoso porque se perde a autocrítica, jogando fora a capacidade de discernir entre o que é bom e o que é mau. Muitas pessoas vivem tão imersas, fechadas em si mesmas e nas configurações de seu tempo que, facilmente, tornam-se insensíveis aos sinais valiosos da graça que pede conversão e uma liberdade construtiva. O que torna mais agravante é que se acham contemporâneas, atualizadas, pelo simples fato de fazer o que todo mundo faz. Elegem as distorções como normas; os excessos, como leis; o poder e o domínio, como únicas metas. Chegando à reprodução, em massa, do descaso para com a vida, da agressividade e do abismo da barbárie.

É ideia comum que, numa sociedade técnica e científica, virtual e globalizada, a internet, as descobertas maravilhosas no campo da genética, da astrofísica, sirvam para criar pontes verdadeiras entre pessoas, promover o bem, cultivar amizades, divulgar obras importantes, circular conhecimentos. As redes virtuais, os sofisticados aparelhos tecnológicos, por exemplo, tornaram-se instrumentos com os quais o homem contemporâneo continua exercendo o dom vindo do céu, de ser parceiro de criação. E olha que muitos cientistas destas áreas afirmam que a revolução está apenas começando. O drama surge, todavia, quando esses mesmos instrumentos funcionam para ameaçar a vida, cultivar a falsa ideia de seres humanos mais selecionados, implantando as infelizes promessas de uma existência sem desconfortos, sem desafios, sem crescimento. Como se houvesse alguma forma de ser gente sem tristeza, enfim, sem amor, porque amar inevitavelmente traz sofrimentos.

Agrava-se a situação o crescimento da indiferença para com a dor do outro, o descaso para com o pobre, com os que sofrem. É cruel um modo de vida marcado pela dimensão econômica que forma gerações de pessoas sem a mínima consciência ecológica, insensíveis aos irmãos mais desprotegidos. Não é raro um discurso que pode culminar no absurdo da eugenia, por exemplo, visualizado em práticas de descarte da vida dos indefesos, sejam eles fetos, idosos, pessoas com características especiais. Essa onda de violência para com o planeta e para com o outro fere o coração da criação e o próprio homem perde sua vocação mais sublime, ser parceiro do divino, na continuidade de uma história sempre em construção. Urgente seria passar de uma lógica da reciprocidade, que aguça reivindicações, troca de favores, para a mística da gratuidade, do cuidado, da descoberta que só uma coisa enobrece, verdadeiramente, os seres humanos, doar-se para que cresça a beleza do Reino de Deus.

O evento Jesus Cristo é modelo de trajetória existencial totalmente coerente. Viveu plenamente o bem e, por isso, deixou dicas para um itinerário pascal. Colocou-se inteiramente numa relação filial com Deus, não se passando por dono. Divino, assumiu a carne humana com ternura; humano, cultivou a reverência ao Pai. Jesus assumiu, de fato, sua liberdade de Filho como dom que faz crescer o amor. Mostrou que não há perdição maior para a pessoa humana do que desperdiçar sua liberdade filial e não favorecer o florescimento do amor. Seu compromisso amoroso para com os pobres, pequenos, instituiu o critério mais profundo de salvação. Ou seja, quem não ama, não conhece a Deus; quem não se doa, não constrói o céu. Assim, o cristianismo tornou-se uma fonte de graça para a humanidade toda. A pessoa de Jesus venceu as fronteiras rígidas da violência e da rivalidade entre os irmãos, instaurando a gratuidade do amor. Amor que, gerado na força do Espírito, não se paga e nem se apaga; vira eternidade.

Como é bom lançar-se, pois, num percurso de contínua construção da história à luz da liberdade crística. Com a graça inaugural de sua Páscoa, Jesus confirmou que o homem pode confiar em sua liberdade criativa, vivendo numa constante saída de si para fazer aumentar o céu. De outro modo, o sétimo dia divino, o descanso do criador, acontece em sua bondosa expectativa de que o ser humano continue sendo artífice de si mesmo e do universo. Não seria exagero confessar que ao receber o Espírito do criador o homem tem todas as condições, mesmo ferido radicalmente pela falta, de continuar a obra divina, de tal maneira que aquilo que o criador concedeu à criatura a possibilidade de fazer, não será feito por nenhuma outra entidade. Se o acaso é lançado no universo já com suas probabilidades programadas, o mesmo não acontece com o ser humano. Sua liberdade é imprevisível, não tem carta marcada e depende de livre e inusitado empenho cotidiano. Tudo isso é muito belo e, ao mesmo tempo, perigoso; do contrário não seria humano.

 

 

 

 

 

Dom Vicente Ferreira
Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte



Novidades do Instagram
Últimos Posts
Siga-nos no Instagram
Ícone Arquidiocese de BH