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Ler a vida a partir do Verbo

A Palavra de Deus não é discurso, mas a presença real de Deus agindo no mundo, criando-o, sustentando-o, fornecendo-lhe consistência e sentido. Aquilo que temos nas páginas da Bíblia só pode ser chamado de “Palavra de Deus” à medida que é “inspirada”, ou seja, enquanto obra do Espírito.[1] Inspiração não é aqui um conceito estático e ligado apenas à autoria humana tornada um instrumento divino quando da redação dos textos bíblicos. Inspiração é um termo teológico dinâmico. Lembra-nos do sopro divino que é o próprio Espírito de Deus insuflando vida na obra criada. Vida essa que, no ser humano, concede- lhe uma identidade, um sentido, um caminho, um destino: a comunhão plena com o Criador e na sua mediação, todo o universo criado pelo mesmo Verbo.
 
Ritualmente, quando um leitor se dirige ao “Lugar Alto” – o Ambão – é o Verbo mesmo quem se volta para a Igreja e expira sua vida sobre a Assembleia; e o faz mediante a forma de palavra humana, enquanto ato comunicativo compreensível. Mas este Verbo que sopra sobre a comunidade de fé e lhe rejuvenesce o pacto (berit) tem seu Espírito “inspirado” pela Igreja significada no Ministério do Leitor que dá Voz à Palavra. Esta inspiração se torna óbvia à medida que a Igreja, que custodia as Sagradas Escrituras e a Tradição, retoma  e discerne a Palavra à maneira de Jesus, o Verbo Encarnado.[2]

A experiência litúrgica da Palavra de Deus, que se faz na comunidade reunida, qualifica a vivência religiosa, tornando-a “discipulado”. Dá-se um salto qualitativo que vai da crença à adesão

Ao estabelecer-se o “colóquio” entre os parceiros, o Verbo de Deus, no Ministro da Igreja,  e a humanidade significada na Assembleia Litúrgica, a Escritura verte-se em carne nos ouvidos dos que a acolhem ativamente. E o reconhecimento da Palavra, fazendo-se acontecimento, se torna claro – quando de sua aclamação “Graças a Deus”-  à investida do Leitor que conclui o anúncio: “Palavra do Senhor”.  A Homilia vai descortinando o sentido oculto e sempre atual da Vontade Divina, ajudando os ouvintes a penetrar, nível a nível, os segredos que levam à comunhão com quem os criou e os tem como parceiros no caminho. A Oração dos Fiéis faz-se quando a Assembleia se dá conta de que  de novo, como “No princípio”, “Naquele tempo”- que é o kairós da Sabedoria Divina – ela se encontra na companhia agradável e jubilosa do Pai. Retorna  ao Paraíso, seu lugar de origem, pois foi aí que Deus o quis desde antes da fundação do mundo. E voltando ao seu lugar de origem, volta à sua condição original, anterior à queda, em perfeita harmonia com o Verbo de Deus. 
 
A experiência litúrgica da Palavra de Deus, que se faz na comunidade reunida, qualifica a vivência religiosa, tornando-a “discipulado”. Dá-se um salto qualitativo que vai da crença à adesão. Essa adesão se exprime por uma maneira nova de estruturar a vida, as relações, de estabelecer as prioridades e de escolher as rotas para torná-las factíveis. Vive-se segundo o impulso criador que, outrora adormecido, fora acordado em nós pela Voz do Verbo. Sai-se do túmulo da autorreferência que asfixia e mata, para aspirar novos ares e por eles ser conduzidos. Dominicalmente, pela Eucaristia, diariamente pelo Ofício Divino, em ocasiões específicas da vida, mediante os Sacramentos e Sacramentais vamos sendo orientados para esse fim, ou melhor, essa finalidade. O Paraíso vai divisando-se em nosso meio. E, como nos Ambões antigos em cuja arquitetura se reconhecia seus vestígios pelas fauna e flora que lhes ornavam, vamos reconhecendo os traços daquele Jardim para o qual fomos queridos e criados… 

 

Pe. Márcio Pimentel
Liturgista

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[1] Cf. BENTO XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. Paulinas: São Paulo, 2010, n.19.
[2] Cf. A Mesa da Palavra. Elenco das Leituras da Missa (Praenotanda). Comentários de J. Aldazábal. Paulinas: São Paulo, 2007, n. 14.
 



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