Jesus, com discípulos, no caminho de Emaús
A Liturgia “pinta” uma imagem de Jesus como Messias. O faz com grande maestria, sobretudo operando o conceito de “comunidade interpretativa”, comum à época da composição do Novo Testamento.1 Pelo simples uso paralelo de perícopes bíblicas alinhadas entre si por uma temática, o que é oferecido dominicalmente às comunidades cristãs, a Igreja constrói uma perspectiva cristológica no imaginário de fé dos fiéis, ou seja, uma compreensão da palavra e gestualidade de Jesus.
Esse procedimento faz da Liturgia o contexto vital para os evangelhos, uma vez que eles são textos da Igreja2 e as celebrações litúrgicas, a realização fundamental, explícita e especial da comunidade eclesial. Tudo isso, contudo, se encaixa numa história prévia, anterior à Liturgia cristã, tal qual a temos hoje. Sobretudo no que se refere ao assunto messianismo, é preciso aprofundarmos um pouco mais a questão, uma vez que esse ponto nos põe em contato direto com nossos irmãos mais velhos na fé: os judeus.
Dentre os treze princípios da fé judaica, colecionados por Maimônides (sec. XII), podemos ler: “Creio plenamente na vinda do Messias (Messias) e, embora ele possa demorar, aguardo todos os dias a sua chegada.”3 O fato aqui a considerar é que a crença numa figura redentora que inauguraria definitivamente uma nova era para o povo israelita e, consequentemente, transformaria o mundo inteiro, não é algo meramente circunstancial. Essa fé na vinda do Messias lança suas raízes na literatura profética. Embora a era messiânica seja interpretada como promessa divina e esperada desde a fundação do mundo, não se encontrará algo exatamente explícito na Torá.4
Jesus é Messias, mas o é de uma maneira muito própria, e cada comunidade interpretativa chegou à sua conclusão por caminhos diversos |
Os estudiosos se dividem quanto à explicação sobre a origem do messianismo em Israel. Alguns situam no período pós-exílico, outros em período anterior, mas que não alcança a época do nomadismo bíblico ou tribal, de modo que se pode estipular de maneira especulativa, com base no testemunho literário da Sagrada Escritura, que tenha nascido na época da monarquia israelita.5
O mais importante para nós, no entanto, é a tradição que se consolidou desde o surgimento do messianismo. Essa tradição é fundamental porque foi com base nela que os judeus contemporâneos de Jesus puderam interpretar suas palavras e gestos, a ponto de convencerem-se de sua identidade com o Cristo, chegando a confessá-la explicitamente.
O que é muito relevante aqui, conforme nos afirma Geza Vermes, é o fato de os contemporâneos de Jesus trazerem consigo uma imagem dissonante de Messias em relação ao modo com o qual Jesus fala e age, sobretudo com o desfecho da cruz. Isso é facilmente reconhecível na frustração dos discípulos no caminho de Emaús: “Nós esperávamos que fosse ele a redimir Israel…”6 O retrato messiânico de Jesus não se encaixa nos padrões de então, ao menos os padrões em voga. Isso aparece muitíssimo explícito no evangelho de João, mais do que nos sinóticos que situam o nascimento de Jesus em Belém, de modo que ele procederia da linhagem davídica (o que seria um pré-requisito para o Messias Rei).7
A identidade messiânica de Jesus está ancorada na experiência de sua páscoa e possui raízes proféticas muito claras |
No Evangelho de João, Jesus chega a afirmar-se Messias no diálogo com a samaritana: “’Eu sei que vem um Messias (…) ‘Sou eu que falo contigo’”.8 Entretanto, ficará óbvia sua rejeição, sobretudo por parte dos chefes dos sacerdotes e fariseus. Também Marcos traz a afirmativa de Jesus “Eu sou” para a pergunta do Sumo-Sacerdote.9 Entretanto, em Marcos, o título Messias fica ligado à figura do Filho do Homem, como o deixa claro a resposta de Jesus.
Conforme dito acima, a figura do Messias se revestia de matizes diversos. Jesus sabe disso, como se pode compreender na leitura dos evangelhos a respeito de seu cuidado quanto à versão que os discípulos possam trazer consigo. Jesus é Messias, mas o é de uma maneira muito própria, e cada comunidade interpretativa chegou à sua conclusão por caminhos diversos, fazendo coletâneas de textos e aplicando-os a Jesus, omitindo passagens e acrescentando outras, costurando informações, etc.
Se há, contudo, uma certeza à qual podemos chegar, ela diz respeito à qualidade profética do messianismo identificado na palavra e ação de Jesus. Ele não vem a cavalo, como Rei Guerreiro, antes, monta um jumentinho. Não se apresenta com uma milícia revolucionária, mas cercado de discípulos que testemunham seu ministério de proclamar o tempo da Graça, embebido de sinais messiânicos, conforme relata Lc 4. Não se assenta no trono real, mas assume a frustração do calvário como destino. Com isso, sabemos que a identidade messiânica de Jesus está ancorada na experiência de sua páscoa e possui raízes proféticas muito claras.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista
1Cf. LOHFINK, Gerhard. Jesus de Nazaré. O que Ele queria? Quem Ele era? Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26.
2Cf. Idem, p. 20ss.
3Citado por SCHOCHET, Jacob Immanuel. Machiach. O Princípio de Maschiach e da Era Messiânica segundo a Lei Judaica e sua Tradição. São Paulo: Maaynot, 1992, capa.
4Cf. BLECH, Rabino Benjamin. O mais completo guia sobre o judaísmo. São Paulo: Sêfer, 204, p. 271.
5Cf. ALAC, JN. Messianismo. In. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. São Paulo: Co-edição Loyola, Paulinas, Paulus, Academia Cristã, 2013, p. 881-886.
6Lc 24, 21a
7Cf. VERMES, Geza. As várias faces de Jesus. São Paulo: Rio de Janeiro, 2006, p. 40-42.
8Cf. Jo 4,25.
9Cf Mc 14,61.