A celebração orientada para a vida (1º passo)
O culto, em sentido cristão, é uma moeda de duas faces. Comporta uma dimensão ritual, simbólica – em teologia dizemos sacramental, e outra, não menos importante, a dimensão existencial. Dizer que as duas se alternam não seria exato, pois na celebração toda a vida cristã é apresentada a Deus na expressão ritual. Em contrapartida, a existência reclama a fecundidade que emana das celebrações, como de uma fonte a irrigar a vida das pessoas. Alguns ritos remetem para essa relação: o rito penitencial quando nos faz recordar nossa condição de pecadores, isto é, que não temos vivido conforme o Evangelho; o rito da partilha do pão que nos recorda o outro que comigo come do mesmo dom; a prece eucarística que entre outras afirmações do gênero suplica que o Espírito “faça de nós uma oferenda perfeita”. Em síntese, não há na liturgia da Igreja algo que traga consigo a vida e que nos remeta a ela.
Bem fiel ao estilo romano (nobre simplicidade), a despedida da comunidade é um desses ritos que abre os olhos para a vida, onde se dá o culto existencial. Após a benção final, o diácono, ou o próprio padre anuncia: “Ide em paz e o Senhor vos acompanhe”; ou, “Glorificai a Deus com as vossas vidas, ide em paz…”; ou, “Aalegria do Senhor seja a vossa força, ide em paz…”.
Um culto espiritual (2º passo)
Jesus aponta um caminho onde a relação com Deus perpassa a relação com os irmãos e brota de uma interioridade que supera o legalismo |
Já no Primeiro Testamento o culto do templo sofreu fortes críticas da parte dos profetas: “Ouvi a palavra de Iahweh, príncipes de Sodoma, prestai atenção à instrução do nosso Deus, povo de Gomorra! Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?”, diz Iahweh. “Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros cevados; no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer. Quando vindes à minha presença quem vos pediu que pisásseis os meus átrios? Basta de trazer-me oferendas vãs: elas são para mim um incenso abominável. Lua nova, sábado e assembleia, não posso suportar iniquidade e solenidade!”
“As vossas luas novas e as vossas festas, a minha alma as detesta: elas são para mim um fardo; estou cansado de carregá-lo. Quando estendeis as vossas mãos desvio de vós os meus olhos; ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei. As vossas mãos estão sujas de sangue: lavai-vos purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. Então sim, poderemos discutir”, diz Iahweh: “mesmo que os vossos pecados sejam como escarlate, tornar-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como carmesim tornar-se-ão como a lã1″ .
A crítica dos profetas encontra eco nos evangelhos quando Jesus propõe uma espiritualidade que supere o nível das aparências: Jesus propõe a esmola, a oração e o jejum em segredo para ser visto apenas por Deus e não como uma piedade ostensiva e exibida2. Critica os religiosos que se dirigem ao templo para o culto e se esquecem do homem à beira da estrada3. Ensina aos discípulos o caminho do serviço4. Ele mesmo assume o lugar do servidor5 , ora em segredo6, admira a oferta da viúva pobre7, acolhe os excluídos8, defende os necessitados e ouve-lhes as necessidades. Jesus aponta um caminho onde a relação com Deus perpassa a relação com os irmãos e brota de uma interioridade que supera o legalismo.
Paulo na sua instrução eucarística critica a comunidade de Corinto por celebrar a ceia do Senhor indignamente: “enquanto uns se fartam outros passam fome, os pobres são envergonhados pelos ricos e a comunidade dividida esvazia o culto de seu sentido9″. O mesmo apóstolo exorta os cristãos de Roma, recordando a necessidade imperiosa do culto espiritual e a vida inteira (corpo) como o lugar da oferenda agradável a Deus: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual10″.
É no interior que se dá o fundamento do sacrifício, do qual o sacrifício exterior se torna imagem, concretização, manifestação. Paulo diz aos Coríntios que não adianta entregar o corpo às chamas sem o amor (cf. 1Cor 13,13). O rito e o símbolo encontram sua razão de ser no interior do coração onde a Palavra de Cristo deve ressoar. Culto exterior há de se harmonizar com culto interior e vice versa.
A lógica da encarnação remete à dualidade sacramental da salvação: olhar o homem de Nazaré e ver o Pai, olhar os gestos do Senhor e ver o amor, tão perto, sensível, palpável |
O mesmo Cristo que se entregou à morte de cruz, entregou-se antes à vontade do Pai no Monte das Oliveiras. Ao sacrifício de sua vida precede o sacrifício de sua vontade. Sem esta primeira norma interior, os ritos e símbolos restarão vazios. Mas a decisão do Tabor de fazer a vontade do Pai concretizou-se na cruz. A oferta que do coração de Cristo se originou, tornou-se lava-pés, pão partido, vinho distribuído, corpo ferido de morte. Quem saberia do ocorrido no coração sem a cruz, ou da obediência sem o lava-pés, ou do amor sem o pão?
A lógica da encarnação (Jo 1,14) remete à dualidade sacramental da salvação: olhar o homem de Nazaré e ver o Pai. Olhar o torturado da cruz e ver o Filho de Deus. Olhar os gestos do Senhor e ver o amor, tão perto, sensível, palpável… A norma da interioridade, do espírito, da fé, humildemente se submete à condição humana, onde os sentidos não são negados, mas afirmados! O que vimos, o que ouvimos, o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida… (cf. 1Jo 1,1-4s.).
Na próxima edição, concluiremos nosso estudo com a reflexão sobre os seguintes passos: “A salvação em pauta sacramental” e “A nobre simplicidade dos ritos” e “Ofertai vossos corpos: do rito à vida”.
Pe. Danilo dos Santos Lima
Liturgista
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1Is 1,10-18.
2Cf. Mt 6,1-18.
3Cf. Lc 10,30-37.
4Cf. Mt 20,20-28.
5Cf. Jo 13,1-17.
6Cf. Mt 14,23.
7 Cf. Lc 21,1-4.
8Cf. Jo 8,2-11.
9Cf. 1Cor 11,17-34.
10Rm 12,1.