Por ocasião dos quarenta anos da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, Dom Piero Marini nos apresentou a liturgia da Igreja como Vida do Filho, Vida da Igreja e Vida do Cristão:
É necessário crer e perseverar na compreensão que a Sacrosanctum Concilium nos oferece: a liturgia é toda a vida do Filho tornada, com a Páscoa, vida da Igreja e chamada a ser, hoje em dia, a vida de todo cristão. Hoje, é necessário crer mais ainda no poder da liturgia. De agora em diante, será necessário confiar menos em nossos atos e em nossa vontade e mais na potência da ação litúrgica que é sempre poder de Deus na força do Espírito Santo. A nós cabe a tarefa de celebrar a liturgia na inteligência de seu significado, no humilde esplendor dos seus gestos e na simplicidade e nobre beleza de seus antigos ritos.1
Sentado à direita do Pai e derramando o Espírito Santo em seu Corpo que é a Igreja, Cristo age agora pelos Sacramentos instituídos por Ele para comunicar sua graça |
As celebrações da Igreja, em suas mais variadas formas e momentos, nos oferecem o ambiente necessário à passagem dos fiéis a uma nova existência em Cristo. Uma vez que a comunidade dos crentes deve prolongar no mundo e na história a presença salvadora de Jesus, somente pode fazê-lo associando-se a Ele permanentemente, reiterando seus gestos e palavras, qualificando sua vida com a Vida Eterna mediada pela Páscoa de Cristo. Já na antiguidade cristã se dizia com clareza: “Ao Pai, pelo Filho na unidade do Espírito”. O Catecismo da Igreja Católica fundamenta a sacramentalidade das ações litúrgicas e da própria Igreja, explicitando com exatidão teológica a dinâmica cristológica e trinitária presente nas celebrações: “Sentado à direita do Pai e derramando o Espírito Santo em seu Corpo que é a Igreja, Cristo age agora pelos Sacramentos instituídos por Ele para comunicar sua graça. (…) Na liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente seu mistério pascal.”2
Há, portanto, uma transformação que se objetiva em cada celebração litúrgica. Ocorre uma sinergia, um trabalho indiviso e integrado entre Cristo e a Igreja. Do “Nós-eclesial” passamos ao “Eu-filial” que, diante do Pai, é capaz de relacionar-se à altura de suas exigências. Porquanto se pode afirmar que, tudo quanto se diz e se faz ao celebrarmos é palavra e ação de Jesus que o Espírito recorda em nós.3 Desse modo, na missa votiva ao Espírito Santo, a Igreja suplica explicitamente: “(…) purificai os nossos sentimentos, para que nosso amor seja perfeito”.4 Sobre isso valem as palavras de São Beda ao afirmar que o Espírito Santo é o “Dedo de Deus” que inscreve a Palavra Divina em nós, curando-nos e instruindo-nos na Verdade. E a Verdade, o sabemos, é Cristo.5
A partir dessas noções se pode inferir que a ritualidade da Igreja se funda exclusivamente na gestualidade de Jesus. Sua finalidade é gerar a identificação do “Nós-eclesial” com o “Eu-filial”. Somente na apropriação consciente e consequentemente frutuosa das palavras e gestos do Senhor se pode chegar a essa transformação pascal almejada nas celebrações litúrgicas. Não há outro caminho possível para os batizados, que foram enxertados (=neófitos) na Videira que é Cristo Jesus: filhos no Filho.
1MARINI, Piero in. A. Grillo – M. Ronconi La riforma della Liturgia. Introduzione a Sacrosanctum Concilium, Milano, Periodici San Paolo, 2009. A tradução é nossa.
2Catecismo da Igreja Católica, n. 1084-1085.
3 Cf. Jo 14,26.
4 Cf. Oração do Dia, formulário B.
5Cf. Beda, o Venerável. Comentário sobre o Evangelho de São Marcos 2,7,32-33. In. Lecionário Patrístico Dominical. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 465-466.
Artigo originalmente publicado no Jornal Opinião e Notícias digital
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista