Em prosseguimento ao artigo da edição anterior, damos continuidade ao entendimento do memorial de Jesus Cristo. Partindo do pressuposto de que Ele era judeu, podemos agora compreender o emprego da palavra memorial que Jesus usa para a ceia com os seus discípulos e reconhecer igualmente a mesma estrutura da ceia pascal judaica:
1. Última ceia (profética) que antecipa o acontecimento iminente, mais uma ordem de iteração (repetição): “Façam isto em memória de mim”.
2. O acontecimento salvífico (irrepetível): morte e ressurreição.
3. Ceias eucarísticas das gerações sucessivas, como obediência ao mandamento do Mestre. Os comensais (os que participam da Eucaristia) tornam-se participantes do acontecimento salvífico, realizando o memorial.
A celebração é, portanto, em sumo grau e ao mesmo tempo, nosso Calvário e nossa Páscoa
Segundo o liturgista Cesare Giraudo, “se Jesus não tivesse instituído a Eucaristia, o evento de sua morte e ressurreição teria permanecido isolado nas suas coordenadas de espaço e de tempo (presas à Palestina e ao passado), e a Igreja das gerações subsequentes, que somos nós, não teria tido modo de voltar a imergir salvificamente nele” . Isto é, “a celebração consiste, portanto, em sumo grau e ao mesmo tempo, em nosso Calvário e nossa Páscoa” . Parafraseando o comentário de Gamaliel (mestre do Apóstolo Paulo antes de tornar-se cristão), ele continua:
“De geração em geração, cada um de nós é obrigado a ver-se, com os olhos penetrantes da fé, como tendo ele mesmo estado lá no Calvário, na primeira Sexta-feira Santa, e diante do sepulcro vazio, na manhã da ressurreição. De fato, não só nossos pais estavam lá; mas todos nós hoje aqui reunidos para celebrar a Eucaristia, estávamos lá com eles, prontos a morrer na morte de Cristo e a ressuscitar em sua ressurreição. Será exatamente nossa comunhão com o corpo sacramental do verdadeiro Cordeiro que nos tornará realmente inseridos naquele eterno presente” .
A comunhão eucarística, segundo as antigas catequeses, recebeu contornos assaz piedosos, mas por vezes distantes da realidade profunda que o memorial do Senhor evoca. Ainda é muito frequente comungar para alcançar graças na intenção de alguém ou mesmo para “sentir Jesus no coração”… Pouco se recorda ou se afirma acerca da comunhão enquanto participação na morte e ressurreição do Senhor, assumindo a celebração da Eucaristia como nosso Calvário e nosso sepulcro vazio. A dinâmica pascal não perpassa a nossa vida: não sai do altar para mesa da existência. O memorial que deveria nos transportar para evento da salvação, torna-se mera recordação mental do que fez Jesus na última ceia, envolto em uma mística milagreira de favores: Deus que nos vem para realizar os nossos desejos.
Os gestos de Jesus remetem ao evento da sua páscoa. Repeti-los é fazer a mesma evocação, tornando-nos contemporâneos ao evento salvífico
Comungar é realizar o memorial da páscoa de Jesus. “Façam isto em memória de mim”. tem a ver com a passagem de Jesus por este mundo, sua vida inteiramente entregue e doada pela salvação do mundo, da manjedoura à cruz (daí a importância do rito da Palavra), sobretudo dos pobres, dos enfermos, dos pecadores, dos excluídos. Tem a ver com a sua história que nos alcança e com a sua pessoa que nos visita. Uma pessoa e um evento que nos interpela, nos chama continuamente para viver segundo o ritmo da páscoa. As nossas ceias trariam, segundo essa nova lógica, a seguinte estrutura:
1. Uma ceia memorial, cumprida como obediência ao mandamento Jesus, que evoca a sua vida inteira (do presépio à cruz, da cruz à ressurreição), tornando HOJE a salvação presente a nós (cf. Lc 4,21).
2. Uma ceia memorial que, evocando os nossos calvários e sepulcros vazios (mortes e ressurreições diárias), vivida a partir da lógica do amor de Cristo, nos une ao Mestre a partir do evento pascal. A cruz do Senhor se prolonga na cruz de cada participante, a ressurreição do Senhor continua na ressurreição de cada integrante da sua mesa.
3. Uma ceia memorial que nos projeta para o futuro: “vinde, Senhor Jesus” e nos compromete com uma existência pascal, disposta à morrer a morte de Cristo e ressuscitar da sua ressurreição para que o mundo tenha mais vida e apresse a chegada do Reino definitivo.
O comer e beber o pão tem valor memorial enquanto realização do mandamento do Senhor para prolongar o evento salvíficoda última ceia.
Paulo, na sua catequese eucarística à comunidade de Corinto (1Cor 11,26), deixa bem claro o sentido da comunhão: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha”. Comer e beber para anunciar? Não se trata de um anúncio verbal? O verbo grego katangelo deixa margem para discussões. Refere-se a um anúncio verbal que impregna a ceia, pois o sentido do sinal é dado pela Palavra de Deus.Tem lógica pensar assim, pois os gestos de Jesus na ceia são acompanhados por suas palavras explicativas: “isto é o meu corpo” enquanto toma o pão e o parte, “isto é o meu sangue” enquanto passa o cálice com vinho aos discípulos.
Os gestos de Jesus remetem ao evento da sua páscoa. Repeti-los é fazer a mesma evocação, em sentido memorial profundo, tornando-nos contemporâneos ao evento salvífico. Grelot afirma: “Todos os atos essenciais que levaram a cumprimento o mistério do Cristo são proclamados toda vez que a comunidade reunida ‘come este pão e bebe deste cálice’” .
O comer e beber o pão e o vinho é anúncio, porque encerra a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Ele se perpetua no ato obediente de comer os dons. Tem valor memorial enquanto realização do mandamento do Senhor para prolongar o evento salvífico que na última ceia, do mesmo modo, foi antecipado. Não por acaso muitas orações pós-comunhão explicitam o sentido desse rito: Recebemos, ó Deus, este sacramento, memorial permanente da paixão do vosso Filho; fazei que o dom da vossa inefável caridade possa servir à nossa salvação. Por Cristo Senhor Nosso. (17º Domingo do Tempo Comum).
Ó Deus, que a comunhão nesta Eucaristia renove a nossa vida para que, participando da paixão de Cristo neste mistério, e anunciando a sua morte, sejamos herdeiros da sua glória. Por Cristo Senhor Nosso. (26º Domingo do Tempo Comum).
É verdade que ainda estamos muito aquém disso. Comunga-se com um grande déficit memorial. Sem participação consciente do que o rito realiza realmente. Muitos fatores podem explicar tal situação que, por sua vez, gera consequências que a reforçam. Exemplo disso é que a Eucaristia não é mais vista como refeição, mas como realidade sagrada sem qualquer vínculo humano. “Receber Jesus” ganhou contornos sentimentais e afetivos que não tocam, nem de longe, o aspecto memorial.
1GIRAUDO, C. Redescobrindo a eucaristia, p. 82.
2Idem.
3Ibidem, p. 83.
4DE ZAN, R. “I molteplicitesoridell’unica parola”. IntroduzionealLezionario e ala letturaliturgica dela Bibbia. Pádua: EdizioniMessaggero Padova, 2008, p. 28
5GRELOT, P. Introduzione al Nuovo Testamento. A liturgia no Nuovo Testamento. Roma: Borla, 1992, p. 115.
Pe. Danilo César dos Santos Lima
Liturgista