Marcadamente rápido e conciso, o evangelho de Marcos, ou “segundo evangelho”, se destaca na literatura antiga (volta do ano 70 d. C.) como a invenção do gênero literário “Evangelho1, que significa “boa notícia”, “boa nova” ou ainda “boa mensagem”. Uma composição literária, aparentemente, realizada em apenas um tempo, em poucos dias, com traços literários lacônicos, que tinha pouco a falar e disse apenas o essencial. Se bem que em alguns pequenos episódios Marcos é bem detalhista, como na cura da hemorroíssa e na ressurreição da filha de Jairo, (em 5,21-43), na execução de João Batista (6,17-29), na unção em Betânia (14,3-9) e no Getsêmani (14,31-42). Claro que ser conciso não significa negligenciar o essencial.
Com apenas dezesseis capítulos, o evangelho de Marcos é escrito em terceira pessoa, em grego simples e com poucas palavras advindas diretamente da boca de Jesus, diferentemente de Mateus e João. Marcos não tem discursos longos, exceto o capítulo 13, que coincide com o seu discurso apocalíptico-escatológico. O narrador deste evangelho destaca sobremaneira o título cristológico Filho (uiós), tanto filho de Deus (uiós tou theou) como filho do Homem (uiós tou anthrōpou), colocando em evidência, de forma especial, a exousia, o “poder-autorizado” de Jesus por parte de Deus, o Pai. Jesus age, segundo Marcos, com poder-autoridade extraordinário, levando as pessoas a se questionarem a respeito de sua ação (cf. Mc 11,28).
Para Jesus, sua filiação é humana, ele é Filho do Homem (Mc 2,10; 8,31; 9,9.31-32; 10,32-34; 13,26; 14,62, estas últimas duas aparições do termo Filho do Homem correspondem ao sentido escatológico, da revelação final, numa espécie apocalipse), para o narrador Jesus é filho de Deus (1,1), embora seja incerta do ponto de vista da crítica textual esta afirmação, que não está presente em todos os manuscritos antigos2. Da parte do Pai, ele é “Filho amado” (uios mou o` agapētos) em 1,11. Na boca do endemoninhado geraseno, Jesus é “filho do Deus altíssimo”, em Mc 5,7. Na transfiguração, em Mc 9,7, Jesus é, novamente nomeado por Deus, “filho amado” (uios mou o` agapētos). No Sinédrio, em 14,61, o sumo sacerdote pergunta: “És tu o Cristo, o Filho de Deus Bendito?” e Jesus responde: “Eu sou”, acrescentando, “E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo com as nuvens do céu”. E, por fim, em Mc 15,39, pela boca do centurião ele é intitulado verdadeiramente filho de Deus (alēthōs outos o` anthrōpos uios ēn theou).
Mas é no capítulo 8 de Marcos, na metade do evangelho, que se destaca o título-clímax da narrativa: Messias. Jesus é, segundo Simão Pedro, o Messias, o Ungido (8,29). Então, no versículo seguinte Jesus proíbe severamente que eles contem a alguém a seu respeito, pondo em evidência o “segredo messiânico”. Desse modo, pode-se notar que, em Marcos, Jesus é um messias diferente, ele mesmo afirma que o Filho do Homem “deve sofrer muito, ser rejeitado, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (8,31). Pedro não compreende tais palavras e o recrimina. Jesus replica: “Vá-te para trás de mim, Satanás”. Pedro deve voltar ao seu lugar de discípulo e seguidor, pois não pode ensinar Jesus a ser o que ele não é, pois Jesus mesmo afirmará depois a que veio: não para ser servido, “mas para servir e dar a vida em resgate de muitos” (Mc 10,45).
Da metade do Evangelho em diante (8,27 – 16,8), depois de curar a muitos na primeira parte (1,1–8,26) e de expulsar demônios, ensinar e começar seu processo de peregrinação para Jerusalém, que formalmente se iniciará em Mc 10,1, Jesus continua a ensinar e no capítulo 14 dá-se início à narrativa da Paixão, que se estenderá até 16,8, com a afirmação “Jesus ressuscitou, não está mais aqui”, em 16,7, “ide a Galileia, lá o vereis”. O Evangelho termina, segundo os manuscritos antigos em 16,8 e o restante Mc 16,9-20 corresponde a um acréscimo tardio, uma reedição, para um fim abrupto com o medo e silêncio das mulheres, que haviam ido, corajosamente, ao sepulcro de madrugada (cf. 16,8).
É válido lembrar, portanto, que o Evangelho de Marcos como uma narrativa primitiva é uma boa notícia sobre o Reino de Deus, pois em 1,14-15 o narrador de Marcos afirma que “depois que João foi preso, Jesus veio para a Galileia, proclamando a Boa Nova de Deus: Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova”. O Reino de Deus (Basiléia tou Theou) corresponde ao principado e soberania de Deus num tempo novo (kairós). Seu cumprimento é agora, pois completou-se o tempo. Assim, o Evangelho de Marcos está constituído sobre um querigma para hoje, a mensagem-anúncio, dos apóstolos é para o dia que se chama hoje. O Reino é o cumprimento das promessas de Deus na vida de Jesus. Em Jesus, Deus, decisivamente, entra na história dos homens para levá-los a salvação, à redenção eterna. Por isso, desde o início do Evangelho segundo Marcos Deus age com poder-autoridade em Jesus, curando, exorcizando e libertando as pessoas de suas mazelas, dos poderes demoníacos, de seus pecados (cf. Mc 2,1-12). Assim, no Evangelho de Marcos descobrimos para o sentido de nossa fé, um Jesus libertador, um Messias servidor, que veio para inutilizar o mal e dar hegemonia ao bem e revitalizar a bondosa criação de Deus.
Por fim, somos interpelados pela mensagem da Boa Nova do Reino de Deus, muito presente no segundo evangelho, e convidados a seguir Jesus pelo caminho, servindo nossos irmãos a exemplo da sogra de Pedro, que depois de curada passou a servir a todos (Mc 1,29-31), e convidados ainda a segui-lo até o fim, tal como as mulheres que o seguiam o serviam até a cruz (15,40-41), e por isso testemunhá-lo em sua ressurreição (Mc 16,1-8), que também, pela fé, será a nossa ressurreição.
Padre Junior Vasconcelos do Amaral
Vigário da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, bairro Castelo
Doutor em Teologia Bíblica pela Faje e professor de Teologia na PUC Minas
1 – O autor do evangelho de Marcos criou com sua obra um novo gênero literário”. (PESCH, R. Il vangelo di Marco. Prima parte, introduzione e commento ai capp. 1,1-8,26. Brescia: Paideia, 1980. p. 33). Com o título de seu livro (Mc 1,1) Marcos deu início ao processo denominado “Evangelho”, livro no qual o autor proto-cristão resumiu a tradição de Jesus com a ajuda da comunidade. Pode-se entender “Evangelho” não no sentido de denominar um livro, mas um gênero literário.
2 – SEGALLA, Giuseppe. A cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1992. P. 77.