“No Brasil e no Terceiro Mundo não se criou um cidadão, enquanto o Primeiro Mundo o preparou desde o Iluminismo. O cidadão é a mistura do homem público e do homem privado; nós não temos nenhum dos dois. A classe média foi, na Europa, o sustentáculo da democracia. No Brasil ela não quer direitos, quer privilégios”.
Milton Santos[1]
A afirmação corajosa de Milton Santos nos inspira a refletir sobre o momento de crise que estamos vivendo. Seria fácil atribuí-la a um governo, a um partido, a um presidente, ou mesmo a alguns ou a todos os políticos. Considerando que somos nós que os elegemos, que eles surgem da própria sociedade brasileira e alçam às esferas de representação pública por nós legitimados, fica cada vez mais difícil encontrar os verdadeiros responsáveis, ou melhor, todos os “culpados”.
Talvez o mais simples seja mesmo generalizar, atribuir ou se esquivar de culpas, detectar erros, negar evidências, exigir retratação pública, buscar compensações. É difícil ouvir o outro, tentar entender os argumentos alheios, buscar razão em discursos contrários aos nossos e, mais ainda, reconhecer-se incompetente para enfrentar uma situação de crise que, na essência, é sempre considerada como alheia. Alheia a mim, a você, a todos nós.
Já ouvimos de renomados especialistas e formadores de opinião que nossa crise não é só política ou econômica, mas institucional: de valores, de méritos, de visão de mundo. Aqui já podemos considerar que o campo de análise se amplia e nele poderemos colher novos frutos para o debate.
Recorrendo a Milton Santos, vemos que ele levanta a questão crucial de que o verdadeiro cidadão é o resultado de uma composição do homem público e do homem privado, seja ela harmônica ou não. No Brasil, essas figuras tendem a se inverter, ou seja, cada um se assenta em um dos campos e busca tirar proveito do outro. Muitos políticos buscam tirar proveitos próprios, privados, à revelia dos deveres que o mandato público lhes impõem e não limitados aos direitos que seus cargos lhes permitem. Alguns empresários se veem como seres de direito privado, que podem e devem aferir lucro, independentemente dos seus próprios resultados, das condições dadas ou que lhes são atribuídas pelo contexto social. Estes se julgam eternamente vítimas do momento econômico, das indefinições políticas, das flutuações do mercado, das oscilações do câmbio etc. Por todos esses reveses, eles não só entendem que podem aferir lucros indiscriminadamente, como muitas vezes se dão ao direito de comprar privilégios. Selam-se, desse modo, os acordos tácitos do já conhecido toma lá dá cá, do ganha-ganha.
Não se forma assim, como diz Milton Santos, o cidadão pleno, a figura uníssona, resultado da interrelação entre o público e o privado. Decorre daí um estado de privilégios esperado e tolerado por muitos, que não deriva da observância ou exigência dos direitos. Essa condição completamente anômala acarreta situações de perplexidade diante dos direitos e deveres não exercitados e da busca incessante de situações de privilégios que possam redundar no ganho indevido, quer seja no plano econômico ou político.
As atribuições de mérito não transitam neste caso pela aptidão, trabalho, competência, ou pela inovação, mas se escondem nas amarras do compadrio, do conluio pessoal, na usurpação do cargo, na prática de corrupção.
Isso se dá em diferentes esferas, das superiores às menos elevadas, contaminando toda a escala verticalizada de poderes, resultando num canal comprometido pela corrupção de toda a cadeia política e produtiva, abrangendo as esferas pública e privada.
No momento em que vivemos, há no ar uma certa perplexidade, já que o status quo parece ameaçado. Alguma verdade parece estar vindo à tona de forma inesperada, parece transbordar dos tonéis seculares da tolerância silenciosa brasileira. Estarão sendo revelados dados para além do que se sabe? Do que se imagina? Do que se tolera? Certamente a onda de escândalos recentes trouxe para a superfície um plasma de podridão e de pessimismo tamanhos que nos leva ao imobilismo.
Onde estarão nossos líderes, nossos exemplos, nossas fontes de inspiração, nossas referências? Talvez, de fato, elas jamais tenham existido ou, se existiram, não sobreviveram. Certamente elegemos outros modelos, outros valores, outros espelhos para nos refletir, que talvez hoje já não sirvam sequer para nos esconder.
Talvez Milton Santos, um de nossos mais célebres pensadores, tenha razão e venhamos agora a conviver com o temor mais forte que pode nos acometer: o receio de termos de sair pela primeira vez da nossa zona de conforto, para questionar um mundo de direitos aos quais nunca tivemos acesso, porque até hoje optamos por barganhar privilégios.
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[1]SANTOS, Milton (1994) “A metrópole e o urbano”, publicada originalmente na Revista Caramelo, número 7. In: Coleção Encontros. Organização Maria Angela P.Leite. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda., 2007. Pág. 101.
Maria Ignez Mantovani Franco
Graduada em Comunicação Social, com especialização em Museologia; cursou doutorado em História Social na Universidade de São Paulo. É doutora em Museologia, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, de Lisboa, Portugal.
No Brasil desenvolve, pela Expomus, projetos museológicos, socioeducacionais e ambientais, em colaboração com instituições e museus nacionais; além de realizar palestras e conferências de capacitação em museologia e gestão cultural.