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É urgente resgatar a afabilidade

 

A sociedade, dita pós-moderna, está trazendo uma série de mudanças comportamentais que afetam agudamente a homeostasia do organismo social. Entre elas, a mais patente é a dissolução da afabilidade, substantivo masculino que caracteriza o comportamento de quem é cortês, gentil, educado.

 

Uso a palavra dissolução, pois creio ser exatamente o que está acontecendo: o comportamento cortês, o relacionamento gentil, a educação comportamental, tudo isso está se dissolvendo, como se atacados por uma enzima fortíssima, de origem aparentemente desconhecida, catalisando reações químicas devastadoras.

Ouso me meter a químico, buscando identificá-la. De imediato, constato sua consistência volátil, associada à total transparência. Inodora e sem sabor, é absorvida rápida e inexoravelmente, sem qualquer rejeição pelo organismo humano. E exclusivamente por ele. Sendo de difícil detecção, produz efeitos catastróficos incontroláveis. Denomino-a então de animase: aquela que destrói a alma.

Feita a identificação, vejamos sua história natural e sua ação. A animase é uma enzima gerada pela mente humana, em consequência de estímulos recebidos pelos órgãos do sentido. Por exemplo: quando assistimos a uma briga entre dois humanos, a primeira reação é o estupor diante de um ato tão irracional. Essa reação nos leva a ímpetos de apaziguamento, de separação dos contendores. Porém entra logo em ação a animase e o estado de alma apaziguador é imediatamente neutralizado e substituído pela alienação, justificada como autoproteção. Essa nova condição, quando suscitada repetidamente, passa por mutações, tornando-se em desejo irresistível de reproduzir aquela ação visualizada. Na primeira oportunidade que surgir, o HER (hormônio estimulador de reproduções) será despejado fartamente no córtex cerebral, estimulando ações agressivas. E a intensidade delas será proporcional àquela que está sendo mimetizada, e que reproduzida irá ampliando-se indefinidamente. Tal e qual a necessidade do aumento de drogas, quando são costumeiramente consumidas.

Cultivar a gratidão, expressando-a sempre. Se houver amor, manifestá-lo com palavras e atos, nunca se omitindo por imaginar que ‘o outro sabe ou deveria saber disso

Compreendida essa nova reação bioquímica da mente humana, passemos às suas consequências na vida diária. Palavras como ‘com licença’, ‘por favor’, ‘obrigado’, ‘desculpe-me’, ‘bom dia’, ‘boa tarde’ etc., são totalmente removidas da mente afetada. Da mesma forma como a utilização de expressões como ‘senhor Fulano’, ‘senhora Fulana’, ‘doutor Cicrano’. E assim elas deixam de ser aplicadas, sendo substituídas por informais ‘você’, resmungos, balbucios e, em fase mais avançada, por desdenhoso silêncio ou desprezo total. Crianças também são acometidas – afinal a animase não faz qualquer distinção de sexo, cor, idade ou o que for, acometendo igualmente a todos. Isso explica os filhos já não pedirem a benção aos seus pais. Às vezes, nem cumprimentá-los, quando se veem.

Casais afetados já não trocam carinhos, não conversam amenidades, não se dão as mãos, raramente se tocam, exceto em excepcionais momentos de enlevo afetivo-sexual, onde os hormônios específicos dessa hora têm efeito neutralizador, ainda que passageiro, dos anteriormente referidos. Quando em fase avançada do processo, estímulos visuais de fotos, filmes ou programas de TV com acentuado apelo à sexualidade, são inoperantes no âmbito doméstico, mas podem ser muito fortes em outros ambientes, como no trabalho ou em reuniões sociais onde se encontram diferentes pessoas. Mas também esses se esgotam, tão logo se alivie o estímulo genital.

Jogos eletrônicos, programas de lutas, ironicamente denominadas ‘artes’ marciais, noticiários impressos e televisivos, produzem estímulos bastante eficazes para o comportamento violento, para as agressões no trânsito, para brigas domésticas.

A lista é enorme, mas não posso encerrar sem sugerir algumas medidas terapêuticas, sobretudo profiláticas. As mais eficazes são, em primeiro lugar a tomada de consciência do abismo em que se está mergulhando, seguindo-se um pujante esforço para humildemente reconhecer seu grau de contaminação, bem como as próprias dificuldades e limitações. Nessa etapa há que se valorizar a autoestima, para não imaginar as ações propostas como derrocada, como atitudes de quem tem “sangue-de-barata”, que é pusilânime. Na realidade, é preciso ter muita coragem e força de vontade para alcançar essas metas iniciais. Os fracos fracassam.

Pode-se procurar ajuda psicológica, mas com extremo cuidado, pois profissionais também contaminados podem produzir efeitos contrários e até exacerbar os sintomas.

Extremamente importante será eliminar, na medida do possível, todo estímulo de violência a que possa estar habituado procurar e receber. Selecionar criteriosamente os filmes, jornais, leituras, programas de televisão. Manter uma vigilância constante para observar as palavras que utiliza – sobretudo a forma como o faz – no relacionamento com os outros, especialmente com as pessoas mais próximas: cônjuges, companheiros(as), funcionários. Cultivar a gratidão, expressando-a sempre. Se houver amor, manifestá-lo com palavras e atos, nunca se omitindo por imaginar que ‘o outro sabe ou deveria saber disso’.

Uma boa e bem escolhida ajuda espiritual, certamente, produzirá efeitos relevantes.
São soluções mágicas? Claro que não. E também não são tão fáceis assim. Mas, se queremos um mundo melhor, em casa e nas ruas, não percamos tempo para começar!

                                                      
Prof. Evaldo A. D´Assumpção
Médico, Escritor, Biotanatólogo e Bioeticista
Membro Emérito da Academia Mineira de Medicina



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