A Sociedade do Cansaço do autor sul-coreano Byung-Chu Han é o interessante livro indicado por dom Edmar José, nosso bispo auxiliar. Nesta obra, o filósofo e ensaísta Sul- coreano dialoga com grandes pensadores da tradição filosófica, como Michel Foucault, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Friedrich Nietzsche, Kant, apresentando importantes elementos de reflexão sobre a sociedade do século 21, definindo-a como uma sociedade do cansaço, do desempenho ou do esgotamento.
O título da obra, como recorda dom Edmar José, é tratado especificamente no sétimo capítulo, mas todos os capítulos anteriores e os textos em anexos, de algum modo, se debruçam sobre a caracterização da sociedade do cansaço ou sociedade do desempenho. “É uma obra provocativa, que nos faz pensar sobre o modo como conduzimos nossa existência e os parâmetros sobre os quais vivemos e preenchemos o nosso cotidiano”, sublinha dom Edmar lembrando ainda que o autor faz uma crítica severa à sociedade baseada no trabalho, na eficiência, no desempenho e na produção: “Byung-Chu Han constata que as doenças atuais, de cunho neuronais, são consequências de uma sociedade em que o sujeito não está submetido a leis, imperativos, proibições ou normas externas, mas se autodestrói numa cobrança interna exagerada por resultados, produtividade, autossuperação e desempenho”.
Ao dialogar com alguns filósofos, Byung vai acenando, ainda que indiretamente, para possíveis saídas para a sociedade do cansaço: superar o totalitarismo da sociedade do trabalho e do desempenho; confiar e abrir-se mais ao outro; dar espaço para o tédio entendido como pausa restauradora; cultivar a vida contemplativa; fazer festa e celebrar; aprender a ver: capacitar o olho para a atenção profunda e contemplativa; cultivar a intensidade da vida. Enfim, devemos humanizar a nossa relação com nós mesmos.
Ao fazer a leitura desta obra, dom Edmar se deparou com alguns questionamentos que partilha conosco: “o sujeito hiperativo da sociedade do desempenho é o único responsável por agir deste modo? Não há um elemento estrutural e social que condiciona a sua ação? Fica para a nossa reflexão”, diz o Bispo.
Enfermidades únicas de uma época
Na Sociedade do Cansaço O autor inicia sua obra constatando que cada época tem suas enfermidades fundamentais e que as doenças do século 21 não são bacteriológicas ou virais, mas neuronais: depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade, síndrome de burnout ou transtorno de personalidade limítrofe. “Na origem destas doenças, verifica-se que não está o excesso de negatividade, mas de positividade”, observa dom Edmar, lembrando que, segundo o autor, o século passado foi uma época imunológica caracterizada pelo processo de ataque ao diferente e de defesa ao que vem de fora. Numa leitura sociológica, a sociedade imunológica era marcada pela dialética da negatividade: a luta era entre o eu e o outro, o eu e o diferente o eu e o estranho. Interessante que o século 21, ao contrário, é o século das doenças neuronais em que o inimigo não está mais fora do sujeito, mas é ele mesmo, na sua mais pura positividade.
Dialogando com o filósofo Michel Foucault, criador do termo “sociedade disciplinar”, Byung- Chul Han afirma que a sociedade apregoada pelo filósofo francês, fortemente marcada pela negatividade do dever, do controle, da disciplina, da proibição, do mandamento, da lei e da coerção que vem de fora, deu lugar à sociedade do trabalho e do desempenho, caracterizada pelo imperativo da produtividade, da hiperatividade e do poder ilimitado. É uma sociedade baseada na positividade porque o sujeito de desempenho é livre de instâncias externas de domínio, é o senhor e soberano de si mesmo. A liberdade do sujeito nesta sociedade é paradoxal porque ao mesmo tempo que não tem coação externa, comete auto- violência numa cobrança exagerada por produtividade, resultado e desempenho, tornando-se explorador e agressor de si mesmo.
Dialogando com Walter Benjamin, que valoriza o tédio profundo como ponto alto do descanso espiritual e como possibilidade do cultivo de uma atenção profunda e contemplativa, Byung constata que na sociedade do desempenho, as multitarefas exercidas pelo sujeito fazem com que a sua atenção seja dispersa, desfocada entre diversas atividades, o que não possibilita o cultivo de atividades culturais que exigem a atenção profunda e o recolhimento contemplativo.
O autor, dialogando com Nietzsche, afirma que a sociedade do desempenho é carente do ver, entendendo-o como capacidade de cultivar um olhar contemplativo, lento e demorado sobre a realidade. Ele está plenamente de acordo com Nietzsche ao afirmar que “ver é a primeira escolarização do espírito”. Para Byung, o mundo de hoje é pobre de interrupções, entremeios e tempos intermédios. O esforço exagerado para maximizar o desempenho afasta a negatividade e a capacidade de contemplar que exige uma pedagogia específica do ver.
O cansaço e o esgotamento excessivo são apresentados pelo autor como estados psíquicos que caracterizam a sociedade do desempenho. Dialogando com o escritor austríaco Handke, autor do “Ensaio sobre o cansaço”, que argumenta sobre a serenidade do cansaço, o cansaço fundamental e o cansaço de comunhão, Byung afirma que o cansaço do sujeito atual é solitário e individual. É um cansaço cego e calado. É o cansaço de esgotamento.
Produzir cada vez mais
Dom Edmar pontua ainda que a obra contém textos onde o autor faz interessante diálogo com Freud e Kant. Byung observa que a psicanálise trabalha com o aparato repressivo e os imperativos da sociedade disciplinar, baseados no medo e na angústia frente a transgressão. A sociedade do desempenho, ao contrário, é a sociedade da liberdade, não do dever, mas do poder hábil. Por isso, a psiqué do homem contemporâneo é da afirmação e não do sujeito obediente da sociedade disciplinar. Já em diálogo com o filósofo Kant, cujo sujeito é o da moral, da obediência e da gratificação, Byung afirma que o sujeito da modernidade tardia não se submete a nenhum trabalho compulsório e suas máximas não são obediência, lei e cumprimento do dever, mas liberdade e boa vontade. Ele ouve a si mesmo, é empreendedor de si mesmo e se desvincula da negatividade das ordens do outro.
O sujeito do desempenho, observa dom Edmar, segundo o autor, nunca sente ter alcançado a meta definitiva e, por isso, é dominado pela coação interna do desempenho e do produzir cada vez mais. Ele concorre consigo mesmo e busca superar a si mesmo até sucumbir-se no colapso psíquico do burnout, a crise do esgotamento. Neste caso, a sua realização coincide com sua autodestruição. Mergulhado na hiperatividade, o sujeito contemporâneo não elabora os conflitos psíquicos porque considera este processo lento demais, por isso, prefere recorrer aos antidepressivos que voltam a restabelecer a sua capacidade funcional e de desempenho.