Recentemente, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, lançou um decreto reformando o rito do lava-pés na missa da ceia do Senhor, celebrada na abertura do Tríduo Sacro. O decreto chancela a prática de inúmeras comunidades que já, antes do Papa Francisco, incluíam as mulheres no rito[1] . É mesmo assim que funciona a Igreja: Pedro confirma a fé da comunidade cristã. O sensus fidei fielis, como faculdade intuitiva da comunidade dos crentes,[2] avança sempre à frente das estruturas eclesiásticas… O texto do decreto traz o seguinte comentário:
A salvação, prolongada pela dinâmica dos sinais, alcança hoje os seus destinatários; o passado salvífico se torna presente e se converte em força transformadora da vida e da história dos crentes |
Para manifestar plenamente este significado do rito a todos os que nele participam, pareceu adequado ao Sumo Pontífice Francisco mudar a regra que se lê no Missale Romanum (p. 300, n° 11) que diz: “Os homens designados, conduzidos pelos ministros…” na forma seguinte: “As pessoas escolhidas entre o povo de Deus, conduzidas pelos ministros,…” (e, consequentemente, no Caeremoniale Episcoporum, n° 301 e n° 299b: “assentos para as pessoas designadas”). Deste modo os pastores poderão escolher um pequeno grupo de fiéis que sejam representantes da variedade e da unidade de cada porção do povo de Deus. Tal grupo poderá ser constituído por homens e mulheres, e de modo conveniente, por jovens e idosos, pessoas sãs ou doentes, clero, consagrados ou leigos.[3]
A participação, evocada pelo texto, é o escopo maior da mudança do rito. Por isso, intenta fazer manifestar mais plenamente o seu significado, estendendo às mulheres a possibilidade de terem os pés lavados, na ocasião dessa celebração.
Da execução mimética realização anamnética da liturgia
A mudança do rito tem por trás dois modos de compreender a liturgia da Igreja, em seu sentido mimético, ou em seu sentido sacramental, mistérico ou memorial (anamnético). Por sentido mimético, entende-se a realização dos ritos como mera repetição das ações de Cristo, sem referências ao seu significado para a fé, reduzindo-o a mero espetáculo ou dramatização dos eventos evangélicos[4] . Tal forma de compreensão da liturgia e do agir celebrativo, previsto pelas rubricas, recaiu no chamado rubricismo, ou ritualismo, isto é, o vício ou a preferência pelos ritos e rubricas apenas em sua exterioridade e formalidade. Por sentido sacramental ou mistérico, compreende-se que as ações litúrgicas remetem a comunidade dos crentes ao evento da salvação. Os gestos realizados na liturgia, têm caráter memorial, isto é, realizam a conexão entre a comunidade que celebra com aquilo mesmo que é narrado pelo rito, em suma, o mistério de Cristo. Diferenciando, a mimese apela para a lembrança psicológica e ilustrativa do gesto. A salvação permanece no passado, não se atualiza e nem se converte em força transformadora do “hodie litúrgico”, do presente e da história. Doutro modo, a sacramentalidade, ou o caráter mistérico, realiza a comunhão com o passado salvífico. A salvação, prolongada pela dinâmica dos sinais, alcança hoje os seus destinatários. O passado salvífico se torna presente e se converte em força transformadora da vida e da história dos crentes.
Da passividade à participação ativa, externa e interna
A carne é lavada, para que a alma seja purificada, a carne é ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o sinal da cruz, para que a alma seja fortalecida |
O assunto, aparentemente banal – enfim as mulheres foram incluídas! –, é vasto e remete à própria dinâmica da liturgia da Igreja, no seu modo próprio de funcionar. É a compreensão mistérica, memorial ou sacramental da liturgia, em que os aspectos exteriores (ritos e símbolos) são reconhecidos como portadores de realidades espirituais. Tal compreensão está diretamente conexa à economia da salvação, isto é, o modo como Deus dispensa e distribui a salvação que realizou em seu Filho amado. Deus nos salva a partir da nossa condição histórica, corporal, sensorial e simbólica. A teologia cunhou uma importante expressão para tratar do assunto: “sacramentalidade da liturgia”. É ela que permite a participação plena dos fiéis preconizada pela reforma conciliar, pois os sacramentos são sinais sensíveis das realidades espirituais. O acesso à graça se dá pela porta dos sentidos, que os ritos e os símbolos acessam. Os fiéis tomando parte deles, deixam-se afetar por aquilo que comunicam. Dessa participação ativa nas ações litúrgicas deduz-se a participação externa e interna. Tertuliano, no século III, exprime essa importante reciprocidade:
Quando entre a alma e Deus se estabelece um elo de salvação, é a carne que faz com que ele exista. Assim, a carne é lavada, para que a alma seja purificada, a carne é ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o sinal da cruz, para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta com a sombra da imposição das mãos, para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a carne é alimentada com o Corpo e o Sangue de Cristo, para que a própria alma seja saciada de Deus. Não podem, pois, ser separadas na recompensa aquelas que estiveram unidas na ação.[5]
A importância dos sinais está fundada no caráter histórico e corporal da pessoa humana. Afirmar que os sacramentos operam a salvação hoje, inclui necessariamente, a consideração pela corporeidade humana[6] . Considerando o gesto do lava-pés, verifica-se na forma anterior ao Papa Francisco, uma “insuficiência sacramental”, visto que o rito se restringia, para a maioria dos que celebram, ao campo visual, ou, em alguns casos e situações, nem isso.[7] Tomando a sério as palavras de Cristo, retomadas pela a própria antífona do missal romano, “lavai os pés uns dos outros”, pode-se alcançar um sentido espiritual e profético para as celebrações.
Pe. Danilo César
Liturgista
1Em muitas comunidades do Brasil, já há muito tempo, as mulheres vinham sendo incluídas no rito do lava-pés. Mas verificava-se igualmente o comportamento oposto: comunidades onde só se admitiam homens ao rito. Outra modalidade, já praticada em muitas outras comunidades, estende o gesto aos membros da assembleia.
2A Comissão Teológica Internacional define o sensus fidei fidelis como “uma espécie de instinto espiritual que capacita o fiel a julgar de forma espontânea se algum ensinamento particular ou determinada prática está ou não em conformidade com o Evangelho e com a fé apostólica. Ele está intrinsecamente ligado à própria virtude da fé; decorre da fé e é uma propriedade dela. Pode ser comparado a um extinto, porque não é primariamente o resultado de deliberação racional, mas assume a forma de um conhecimento espontâneo e natural, um tipo de percepção (aisthêsis)”. Cf. p. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. O Sensus Fidei na vida da Igreja, n. 49. Col. Documentos da Igreja, 21. Brasília: Edições CNBB, 2015, p. 37.
3Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Decreto In Missa in Cena Domini, em 6 de janeiro de 2016. Disponível em: http://www.vatican.va/ roman_curia/congregations/ccdds/documents/rc_con_ccdds_doc_20160106_decreto-lavanda-piedi_po.html, extraído em 01 de fevereiro de 2016.
4 Por exemplo, fazem mimese no rito, os presidentes (padres e bispos) que, durante a narrativa da instituição, recitam as palavras do Senhor na última ceia e repetindo os gestos narrados, como por exemplo, partir o pão, mostrando a hóstia aos fiéis, dando uma “olhadinha” para o alto quando pensam que as palavras isso sugerem fazer… Não compreendem a estrutura do rito eucarístico, que como ensina o missal romano (cf. IGMR, 72), está estruturado a partir das ações fundamentais de Cristo na ceia.
5 TERTULIANO. “A ressurreição dos mortos”. In. CORDEIRO, J. de Leão (org.). Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do Primeiro Milênio. Fátima – Coimbra: Secretariado Nacional de Liturgia – Gráfica de Coimbra, 2003, p. 220.
6 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1146.
7 Pensando em algumas situações, as Igrejas muito longitudinais, ou a localização do rito: a participação pelo sentido da visão pode ficar deveras comprometido. Pensando no caso de pessoas com deficiência visual, o déficit seria ainda maior, pois o tato e a audição são para esses irmãos e irmãs fundamentais. De qualquer modo, o déficit existe, seja nos casos ou nas situações